segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Winifred Holtby: A Voz de Deus

Este livro está a surpreender-me. Pelo menos os dois primeiros contos são bastante diferentes do que eu estava à espera. Especialmente este, o segundo, pois se havia coisa que eu não esperava encontrar num livro intitulado Histórias de Fantasmas era ficção científica. E no entanto...

... e no entanto foi isso mesmo o que encontrei neste conto de Winifred Holtby, autora que, ainda por cima, desconhecia por completo. Não uma ficção científica moderna, naturalmente, pois afinal este A Voz de Deus (bibliografia) é conto de 1934, mas uma FC que me parece ter sido influenciada por H. G. Wells e pela sua A Máquina do Tempo.

Sim, o fulcro da trama é uma invenção, realizada pelo clássico génio solitário da FC vitoriana e pós-vitoriana. Não uma máquina do tempo propriamente dita, mas um aparelho que permite ouvir vozes vindas do passado. Holtby conta o que resulta dessa invenção com uma forte e muito corrosiva ironia, metendo ao barulho a imprensa em versão tabloide, pois quando a novidade se espalha há imediatamente um desses jornalecos que salta para agarrar a oportunidade de publicação exclusiva de conversas de velhos e muito mortos famosos.

E assim lá se põem as pessoas com acesso à máquina à escuta. Depois de se escutar este e aquele famoso, alguém tem a ideia derradeira: e se escutassem Jesus Cristo? Grande comoção, grande borburinho: quase todos querem ter acesso às palavras de Jesus, dos tabloides à igreja, e de novo Holtby descreve esta disputa com fortíssima ironia. Mas lá se chega a um acordo, sintoniza-se a engenhoca para Jesus, soa a "voz de deus" do título e...

... e ninguém percebe patavina.

E ninguém percebe porquê. Já falei da ironia? Pois. Ninguém percebe porquê, apesar da razão ser óbvia: Jesus não falava inglês, mas sim aramaico, uma língua semítica hoje reduzida a uma série descontínua de comunidades espalhadas pelo Médio Oriente. E claro que entre aquelas pessoas que ali estavam a ouvir ninguém falava a língua. E quando arranjaram um tradutor, ele não era o mais fiável dos tradutores, até porque o aramaico dos tempos de Jesus não é idêntico ao de hoje. O resultado de tudo isto é um conto bastante divertido, muito corrosivo mas cheio de tato, com o qual a autora consegue abordar de forma irónica alguns assuntos para muita gente intocáveis, sem ser minimamente ofensiva (pelo menos para mim; dados os temas, de certeza que haverá por aí alguém capaz de se ofender com este conto). Uma boa surpresa.

Conto anterior deste livro:

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