Deve haver qualquer coisa nas medalhas que desperta nos escritores, esses iconoclastas, uma irresistível tentação para a troça. Não em todos, imagino, que conheço alguns que provavelmente enfunariam o peito medalhado como pavões no cio. Mas em muitos. E Mia Couto, pelos vistos, é um deles.
E digo pelos vistos porque em As Medalhas Trocadas ele se arma de corrosiva ironia para narrar a vida de um desgraçado que os colonizadores portugueses primeiro e depois um senhor búlgaro de quem ele nunca tinha ouvido falar acharam por bem medalhar, sem que ele percebesse porquê ou achasse nisso alguma razão ou motivo. De facto, tudo indica que as medalhas eram para outro e lhe foram dadas por engano. Poderia pensar-se que era uma sorte receber assim medalhas sem fazer nada por isso, mas não. O desgraçado vê-se perseguido a vida inteira por aquelas porcarias, pois atrás de tempos tempos vêm e aqueles que hoje estão na mó de cima depressa poderão ver-se atirados para a mó de baixo pelo moinho da História, e ai de quem seja associado a eles, merecida ou imerecidamente.
É uma verdade universal que os ditadores odeiam o humor. Eles bem sabem porquê; é que o humor, a ironia, até mesmo o sarcasmo, servem frequentemente para denunciar coisas muito sérias, quer tenham um fundo de ridículo quer não tenham. As medalhinhas certamente têm, e Mia Couto explora-o bem. Em tudo.
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