quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

FC portuguesa? Para onde vai?

Não estava previsto escrever agora isto, mas o Artur Coelho disse de sua justiça sobre esta conversa nas suas duas últimas colunas no Bit2Geek, e eu discordei dele, de modo que teve de ser. Nas duas últimas, mas especialmente na última; basicamente estou de acordo com o que ele diz na primeira. E este "primeira" e "segunda" referem-se ao momento em que comecei a escrever este texto. É muito provável que quando o acabe ele já tenha dito mais coisas, mas agora só vou falar sobre o que está aqui.

Se eu aceitasse o diagnóstico que ele apresenta com o habitual fatalismo de quase todas as discussões sobre este tema, fechava simplesmente a loja, deixava de fazer coisas, deixava de comentar coisas, remetia-me ao meu mundinho, a escrever as minhas coisinhas para me livrar delas e a metê-las na gaveta (o que é basicamente o que faço agora) e mais nada (o que não é o que faço agora). Mas não o aceito, por isso continuo a fazer coisas. Porquê? Porque vejo as coisas de outra forma. Eis o que eu vejo:

Vejo um movimento no âmbito da FC portuguesa como nunca houve. Com oscilações de ano para ano, naturalmente, com as suas carências, claro, mas vejo mais gente a escrever, a publicar, possivelmente até a ler (ainda que não seja muito fácil aferir este último dado com o recolhimento de demasiada gente e comentário a redes sociais mais ou menos fechadas) do que alguma vez houve. No "ano milagroso" de 1993, havia basicamente uma editora a publicar FC portuguesa, a Caminho, e o ano só foi milagroso porque quase todo o seu catálogo do ano foi ocupado por FC portuguesa; hoje há várias, ainda que algumas — ou muitas — prefiram chamar outras coisas à FC que publicam. E os números vão no mesmo sentido: no "ano milagroso" de 1993 publicaram-se cerca de 10 livros de FC portuguesa. Bem mais do que era hábito na época. Pois calha que em 2017 se publicaram 25, mesmo sendo alguns reedições e outros ebooks; em 2018 foram 32; E este ano, mesmo sendo claramente o pior dos três, ainda hão de acabar por ser à volta de uns 20. E isto contando só com os títulos recolhidos pelo Ficção Científica Literária; há de certeza mais. Não há é comparação possível.

Vejo dois livros distópicos, parentes muito próximos da FC, portanto (se não forem mesmo FC), a serem finalistas de prémios literários portugueses este ano: Ecologia, da Joana Bértholo, e Meio Homem, Metade Baleia, de José Gardeazabal. Alguma vez aconteceu? Só com o Saramago, que eu saiba.

Quanto à velha história de que a FC como género é mal vista também dava pano para muitas mangas. Dentro do fandom (dos fandoms, que isto não é coisa só nossa; até os americanos se queixam do mesmo) existe essa velha queixa de que a visão exterior sobre o género é condescendente e desrespeitosa, mas faz-se demasiado de conta de que a visão do género sobre o exterior não tende a ser igualmente condescendente e desrespeitosa. Eu percebo porquê — também me sinto atingido quando leio coisas fraquinhas de escritores ditos "sérios", com temas, abordagens e ideias que já tinham sido antes exploradas, e tantas vezes melhor, por escritores de FC. Mas a verdade é que escamotear a realidade não ajuda ninguém... nem mesmo à projeção pessoal de quem a escamoteia. A realidade é que a FC é mal vista tanto por culpa da tacanhez e ignorância alheia, o que a malta adora sublinhar, quanto da sua própria arrogância e ignorância, o que a malta faz tudo para esconder. E sim, quando eu digo "a malta" estou a incluir-me: também fui muitas vezes — e ainda sou, de vez em quando — culpado disso.

Por outro lado... com duas distopias finalistas de dois prémios literários daqueles "de prestígio", só este ano, como é? A verdade é que os "bem-pensantes" só são contra a ficção científica quando percebem que estão a ler ficção científica. Se ninguém lhes disser nada, consomem-na com gosto e ainda lambem os beiços. Quando pegam num Ensaio Sobre a Cegueira e o enchem de elogios nem lhes passa pela cabeça que estão a elogiar um romance de ficção científica social, segundo a terminologia do Asimov. Porquê? Porque só olham para o que sai do gueto ou nunca lá entrou. E é por isso que eu até percebo quem rejeita o rótulo de FC, apesar da minha abordagem ser a oposta: dar o rótulo a tudo o que seja FC, quer o seja com "pureza", quer o seja impuramente.

No que está dentro do gueto há carências? Claro que há. Falta qualidade, provavelmente — é por exemplo deprimente constatar que quase 30 anos depois da publicação original do Caçador de Brinquedos ainda não tenha aparecido ninguém a escrever "FC-de-gueto" melhor que o Barreiros... e que o próprio Barreiros não tenha evoluído por aí além desde essa época — mas como eu não acredito que a qualidade seja de geração espontânea, isto é, que seja possível a existência de uma qualidade sustentada sem que antes haja quantidade, só posso achar que vamos no caminho certo. Devagarinho, frustrantemente devagarinho, mas no caminho certo.

(Já agora, esta relação quantidade - qualidade aplica-se não só em geral mas também no particular. Quem não escreve mais que dez ou vinte páginas por ano, se tanto, só muito dificilmente conseguirá escrevê-las bem. Escrever é tanto uma arte como uma técnica e, como qualquer técnica, também depende de uma espécie de "memória muscular" — apesar de não haver metidos nisto músculos dignos de nota — mental para ser feita bem. Sem treinar, há coisas que começam a perder-se e demoram a recuperar.)

É que havendo coisas, a academia mais tarde ou mais cedo acaba por aparecer. Um académico sério (e eles existem) estuda o que existe, pelo que o que é realmente importante é as coisas existirem. Isso é a base, e é essa base que parece agora estar finalmente a começar a ser construída. Quanto mais as coisas existirem, mais dignas de nota se tornam. Quanto mais relevantes forem, também. Um dia haverá quem repare que andamos por cá... e se não houver, também, que importa? O que é que interessa mais, a aprovação da academia ou da literatura estabelecida, ou leitores?

Eu cá prefiro leitores, francamente.

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