domingo, 1 de dezembro de 2019

FC portuguesa? Mas para quê?

A Cristina Alves começou por divagar um bocado sobre a ficção científica portuguesa, eu discordei de várias coisas e vai daí pus-me a escrever. Primeiro escrevi sobre o que é, depois escrevi sobre se existe. Se calhar convinha dar uma vista de olhos a esses textos antes de ler este, porque não vou estar a repetir-me e quem se ficar por este talvez apanhe algumas coisas um bocado no ar.

Neste, não falar de nada que a Cristina tenha dito e me tenha causado alguma discordância; a ideia, aqui, é lançar para cima da mesa algumas ideias minhas, que me parecem importantes em qualquer discussão deste género e que raramente vejo afloradas. Porque quando se fala de ficção científica portuguesa, a conversa em geral fica presa nas dificuldades óbvias (a falta de público, a falta de editores, a falta de produção) ou em tentativas de definir o que é e o que deixa de ser, mas parece-me que há mais alguma coisa que lhe falta, uma carência que ajuda a compreender parte das dificuldades óbvias: a questão da relevância.

É que me parece que uma das coisas que mais falta faz à FC portuguesa é relevância.

Não que seja tudo irrelevante, naturalmente. Mas se fosse possível juntarmos toda a produção de FC nacional e tirarmos uma média à relevância, o resultado seria bastante baixo.

E a relevância é importante. É importante para encontrar e fazer crescer um público, é importante para promover a durabilidade das obras, é importante, até, pelos efeitos que tem na sua validade artística, etc. A que irá um leitor dedicar mais depressa o seu tempo, a uma obra relevante, isto é, a uma obra que o faça sentir que obtém dela mais do que à primeira vista seria de esperar, uma obra que o enriquece, ou a uma obra irrelevante, daquelas que agora se leem e dez minutos depois estão esquecidas?

Pois.

Há várias maneiras de dar relevância à ficção científica. Uma dessas maneiras, que há até quem pense erradamente que é a única, é fazê-la "de ponta", fazendo uso das mais recentes evoluções e ideias científicas e tendências do próprio género. Infelizmente, esta abordagem tem vários problemas, que se prendem em parte com o inevitável amadorismo dos nossos escritores e em parte com carências do nosso sistema educativo, que vão influenciar tanto os escritores quanto os leitores. É que enquanto em mercados mais profissionalizados há escritores que se podem dar ao luxo de não fazer nada além de recolher informação, brincar com ideias, elaborar histórias, trabalhá-las e escrevê-las, nós somos todos obrigados a fazer tudo isso nas horas vagas dos trabalhos que realmente põem o pão na mesa. E assim é praticamente impossível mantermo-nos na crista de uma onda que está permanentemente em movimento rápido, e produzir mesmo assim obras sólidas, com as necessárias elaboração e reflexão e cuidado técnico, e a tempo de não estarem já ultrapassadas quando finalmente ficarem prontas. Com tal desvantagem à partida, conseguir com sucesso seguir esta abordagem seria quase um milagre. E não é a única, ainda por cima. O nosso sistema de ensino cria um fosso extremamente prejudicial entre as ciências e as humanidades, o que vai dar origem a demasiada gente interessada nas questões técnicas mas sem interesse algum pela literatura e, o que talvez seja ainda pior, gente interessada em literatura mas não só sem interesse pelas matérias científicas como profundamente ignorante sobre elas. E a FC de ponta exige escritores e leitores bem informados.

Outra estratégia possível é aderir a modas. Não que as modas de uma forma geral deem origem a material particularmente bom, relevante ou até interessante, mas se forem usadas com alguma originalidade podem dar, até porque algumas delas, como a atual moda das distopias feministas, refletem ansiedades bem reais e extremamente atuais. O problema, claro, é que quanto mais original a obra for mais se afasta de um certo "mainstream" da moda que quer seguir, o que pode dificultar a sua penetração no mercado. Além daquela realidade chata da pequenez do nosso mercado colocar inevitavelmente os nossos escritores (e editores) no papel inerentemente subalterno de meros seguidores da moda. E há também que ter em conta a fugacidade de qualquer moda e, de novo, o nosso amadorismo, dois factos que, em conjunto, tornam bastante provável que quando o autor Fulano tiver finalmente pronta para publicação a obra xis que quer integrar na moda tal, esta já levou a uma saturação tal do mercado que o pobre do Fulano tem dificuldade em penetrar e/ou em fazer-se ouvir no meio da cacofonia. Ou a moda já terminou, pura e simplesmente.

Outra estratégia é estar atento à sociedade que nos rodeia. E escrever em conformidade. Isto é: fazer a antítese da literatura leve, de mero escapismo e entretenimento, que por vezes se tenta promover como a solução para todos os problemas da FC portuguesa. Julgo que é precisamente o contrário: a FC portuguesa precisa de ser relevante e uma das melhores formas de o ser é mergulhar decidida e claramente no comentário social. E poucos géneros são mais talhados para o comentário social do que a FC, com a capacidade que esta tem para projetar tendências para sociedades futuras ou paralelas ou explorar as consequências deste ou daquele cenário. Basta olharmos para as obras mais frequentemente republicadas e elogiadas, e veremos comentário social e político por todo o lado, dos mais antigos clássicos às obras mais recentes.

Muitos autores resistem a fazer isto com o argumento de que ao tomarem posição política ou ao fazerem comentário social podem estar a alienar leitores potenciais por estes não se reverem nas suas opções e nos seus pontos de vista. É uma renitência válida, mas essa medalha também tem um reverso de que nunca ninguém fala: os leitores que só o são porque se reveem nos pontos de vista do autor. Olhando para a literatura mundial, encontramos fartura de casos não só de autores que não são particularmente bons em termos de técnica literária mas se tornaram extremamente influentes e marcantes devido à argúcia das suas observações sociológicas, como de autores francamente medíocres em praticamente tudo, que no entanto conservam um público fiel por motivos puramente ideológicos. Até em Portugal isso existe. Mas não darei exemplos portugueses; vou dar dois americanos: L. Ron Hubbard e Ayn Rand, dois péssimos autores de meados do século passado que continuam até hoje a ter leitores.

Não quero com isto dizer, naturalmente, que tentar seguir o caminho de Hubbard e Rand é boa ideia. Longe disso. Quero apenas mostrar como o argumento da perda de leitores não colhe. O mundo está cheio de autores que nunca se coibiram de fazer comentário social nas suas obras (e fora delas) e nunca tiveram falta de leitores. Se a obra for boa, se for relevante, só um leitor francamente tacanho a rejeita por razões ideológicas, e se é verdade que leitores tacanhos existem, não é menos verdade que a maioria não o é e que por cada rejeição ideológica haverá sempre uma adesão igualmente ideológica. Ou até mais que uma.

Gostaria que a questão da relevância fosse mais frequentemente aflorada quando se discute a FC portuguesa. Porque me parece fundamental para o seu desenvolvimento.

Sublinho algo que já ficou expresso acima, para que não fiquem dúvidas: nem toda a FC portuguesa é irrelevante, há bons exemplos de relevância em todas estas vertentes, mas também há um clima geral que tende a olhar mais para dentro do que para fora, e não só na FC. O muito pós-moderno autorreferencialismo irónico é uma praga de que custamos a livrar-nos, a tendência para sobrepor o efeito literário ao conteúdo, que alguns autores importam de fora do género (caso da Isabel Cristina Pires, por exemplo), é outra... embora aí talvez seja mais questão de grau, porque por outro lado também parece haver autores que julgam que o desenvolvimento da sua capacidade para se exprimirem em língua portuguesa é secundário (não é).

E fico por aqui, que isto já vai bastante mais longo do que eu tinha planeado. Há mais a dizer, mas fica para depois.

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