quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Manuel Alegre: Alma

Escolher excertos de romances para incluir em coletâneas ou antologias tem muito de arte, mesmo que certos romances facilitem mais a vida aos praticantes dessa arte do que outros. Convém encontrar um equilíbrio entre a vontade de despertar curiosidade para o livro exterior ao excerto e a igualmente forte vontade de apresentar um texto cuja leitura não se apresente frustrante, isto é, um texto demasiado aberto, que funcione particularmente mal quando isolado do resto.

No caso deste texto de Manuel Alegre a escolha foi bastante feliz, ainda que o autor tenha facilitado muito. Com efeito, Alma, primeiro capítulo do romance homónimo, funciona perfeitamente como conto independente, narrando uma história de infância, ambientada nos círculos (maioritariamente) republicanos e progressistas de uma terreola beirã em plena fase inicial (segundo parece; nisso o texto não é claro) do salazarismo.

O protagonista é um miúdo, descendente de uma família que é uma espécie de aristocracia republicana local, por mais que isso constitua um contrassenso, e oposicionista do regime. Há na terra uma espécie de ritual, no qual se celebram os valores republicanos e a liberdade, e o miúdo, dada a sua condição de príncipe não oficial, tem de estar presente. Mas ao mesmo tempo há jogo de bola, joga o clube da terra. E o puto, que tem bastante mais interesse pela bola que por cerimónias chatas, rebela-se, proclamando-se monárquico. Escandaleira, claro. Mas no fim tudo se resolve.

É um texto bastante bem escrito e bastante interessante, retratando com carinho mas também com ironia mais ou menos corrosiva uma certa camada da burguesia antissalazarista e provinciana de que o próprio autor faz parte (afinal, nasceu em Águeda), pelo que deverá conhecê-la bem. Não terá chegado para me despertar verdadeiramente a curiosidade pelo romance completo — prefiro outras literaturas, como é sabido — mas foi sem dúvida uma leitura agradável.

Contos anteriores deste livro:

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