Falei aqui há dias de relevância no contexto da ficção científica portuguesa e, num daqueles exercícios de sincronicidade que o acaso teima em fornecer a quem está atento, eis que dias depois leio uma noveleta que poderia perfeitamente funcionar como ilustração do terceiro tipo de relevância que aí mencionei.
Publicada em 1974, num período de grande agitação social na América, durante o qual a contestação à Guerra do Vietname se fundiu com ramificações tardias do movimento pelos direitos civis, nas quais o movimento Black Power teve a sua maior visibilidade, Debaixo de Cerco (bibliografia) é uma noveleta corajosa sobre racismo. O protagonista-narrador de Robert Thurston é um intelectual branco, casado com uma negra, e defensor de relações harmoniosas entre as raças numa sociedade americana de futuro próximo, distópica, na qual os movimentos de libertação (ou até de supremacia) negra parecem ter tido sucesso.
E também é uma história problemática em outros níveis pois recorre à velha e batida técnica da violação para desencadear ou fazer avançar a narrativa. Não a narrativa centrada na mulher violada, a qual pouco mais acaba por ser que cenário, mas a narrativa centrada na relação entre o homem violador e o homem marido da mulher violada. Aquele é um negro, retratado como uma espécie de chefe de gangue que na realidade distópica que Thurston cria é livre para fazer impunemente tudo o que lhe der na veneta. E esta, claro, é o intelectual branco, que se vê não só na posição de vítima — apesar da verdadeira vítima ser outra — mas também na de minoria oprimida.
O que Thurston quer fazer com isto, julgo eu, é discutir a forma como as relações raciais na América, desde sempre violentas, podem ou não perpetuar a violência se e quando o centro de poder mudar de mãos, da minoria branca para a minoria negra (sim, são ambas minorias; há a tendência de tratar como minorias apenas as não hegemónicas, mas todas o são). É dizer que, talvez, só violentando os violentadores será possível fazê-los realmente compreender o que sentem desde há séculos os violentados. Por vezes, o conto parece bastante racista porque parece dar como adquirido que a raça terá sempre centralidade na vida americana, mesmo que a minoria branca perca as rédeas do poder. Mas não creio que fosse essa a intenção do autor. Parece-me que a intenção é tentar compreender o ponto de vista do movimento negro, particularmente do mais radical: os Black Panthers e grupos semelhantes, que na altura tinham bastante proeminência em certos círculos. Numa perspetiva essencialmente antirracista.
Seja como for, este é um bom conto de ficção científica social, completamente carregado de conteúdo, nos antípodas do escapismo que demasiada gente associa com demasiada frequência ao género. Com os seus problemas, certamente, e aberto a que pessoas diferentes nele encontrem coisas diferentes, como de resto é hábito, mas bom.
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