terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Ray Bradbury: A Segadeira

Na literatura, inclusivamente naquela que gosta de se apresentar como a mais original, é pouco o que realmente se cria. As ideias, muitas vezes as mesmas sofrem múltiplas variações e recombinações e/ou são executadas de formas distintas por autores distintos. Há quem julgue que isso é plágio, mas não é. Não há plágio de ideias ou de conceitos; só a execução dessas ideias e conceitos é plagiável. Tudo o resto é intrínseco aos intercâmbios culturais que fazem parte do desenvolvimento de qualquer cultura, e é muito frequente que uma dada ideia surja em múltiplos momentos e sob múltiplas formas sem que sequer haja qualquer espécie de fecundação cruzada entre os criadores. Qualquer criador que seja honesto consigo próprio (e já para não falar dos outros) sabe que já teve ideias que veio a encontrar mais tarde em obras de outras pessoas, já teve ideias que só depois de as ter (às vezes muito depois das ter) compreende que nascem de sementes plantadas anos ou décadas antes por qualquer obra experimentada e depois esquecida, pelo menos na aparência, e muitos sabem também que já reutilizaram com plena consciência esta ou aquela ideia alheia.

Pois bem, não sei se Saramago leu ou não Ray Bradbury e, se leu, se terá ou não lido este conto. Podemos ter aqui contaminação de ideias, e igualmente podemos ter o desenvolvimento independente de uma ideia semelhante. Mas o que é facto é que este A Segadeira (bibliografia) tem elementos importantes em comum com um dos romances tardios de Saramago: As Intermitências da Morte.

Com efeito, também aqui temos a figura da Morte, que a páginas tantas se rebela. Não da mesma forma, no entanto. Talvez até se possa dizer que da forma oposta: enquanto a Morte de Saramago se rebela por amor, a morte de Bradbury fá-lo por desgosto. Também a morte é diferente, sendo a de Saramago a figura tradicional da Morte, nada mais sendo a de Bradbury que um pobre diabo que um certo e fatídico dia vai dar a uma quinta no oeste dos EUA, no meio, aparentemente, do período de fome generalizada que se seguiu ao Dust Bowl, nos anos 30, e onde encontra comida, uma seara pronta para ser colhida, um homem deitado na cama, morto, e um papel onde este transfere a propriedade da quinta para aquele que o encontrasse e a quisesse.

O conto segue depois o processo de descoberta por parte do homem das estranhas características daquelas espigas e do que elas realmente significam. E as consequências que tem essa descoberta, tanto para ele quanto para o mundo cá fora. É um conto muito bom, este; mais um dos grandes contos de Bradbury.

Contos anteriores deste livro:

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