segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Douglas Preston: Impacto

Tecnothrillers. Um termo (quase) inglês que não tem tradução portuguesa, embora a primeira parte da palavra já o seja, e designa uma peculiar variante literária que geralmente (mas nem sempre) se enraíza profundamente na ficção científica. Apesar disso, nunca foram muito do meu agrado. O tecnothriller tem como principal objetivo a criação de uma trama envolvente e enrodilhada, cheia de ação e muitas vezes com presença de militares e/ou agentes de serviços secretos, em que os elementos de FC servem sobretudo de suporte à ação, não como motor para alguma espécie de reflexão. Também há FC propriamente dita que é assim. Mas eu sempre preferi da outra.

Além disso, praticamente todos os tecnothrillers que já li na vida pareceram-me mais adaptações de filmes do que obras literárias independentes. Há uma certa uniformidade neste tipo de romance comercial que faz com que praticamente todos pareçam projetos de blockbusters de verão, o que para quem procura variedade nas leituras não é propriamente agradável. Pega-se num desses livros e depressa fica perfeitamente óbvio quem é vilão e por isso acabará por morrer ou ser preso antes da história terminar e quem é herói e por isso acabará por se sair bem no final feliz, por mais que a meio pareça ter a vida por um fio, o que reduz quase a zero a surpresa da narrativa, por mais que o autor se esforce por criar reviravoltas e mais reviravoltas, tentando assim mantê-la interessante. Exceção feita apenas para algum protagonista secundário que acabe morto, muitas vezes heroicamente, a fim de estabelecer que sim, sim, o vilão é mesmo vilão.

E sim, este Impacto (bibliografia) é tudo isso. O que é particularmente aborrecido porque Douglas Preston até tem boas ideias, ideias de ficção científica "a sério", por assim dizer, a sustentar este livro.

Tudo começa quando algo que parece um meteorito parece cair ao largo da costa do Maine, estado norte-americano que ocupa a ponta nordeste do território dos EUA. O meteoro atrai a atenção de uma personagem curiosa, que decide procurá-lo em companhia de uma amiga: uma jovem negra, filha de um pescador, de volta à terra natal depois de ter abandonado a universidade (e logo uma das afamadas), apesar de ser brilhante e para enorme desapontamento do pai. A ideia: encontrar o meteorito e vendê-lo, pois meteoritos podem valer montantes avultados de dinheiro e ela está a precisar.

Entretanto, como uma história destas tem sempre de ter várias linhas narrativas que só se vão encontrar perto do fim, noutro ponto dos EUA um cientista repara numa estranha fonte de raios gama em Marte. Problema: Marte é um planeta, e só objetos particularmente energéticos (i.e., estrelas) são capazes de emitir raios gama com aquela intensidade e regularidade. Ele procura investigar, mas os chefes cortam-lhe as pernas, insistindo para que faça o trabalho que devia estar a fazer. Insiste e acaba despedido. E depois acaba assassinado por um assassino profissional, pago para recuperar os seus dados.

Não contente com duas linhas narrativas, Preston acrescenta ainda uma terceira, centrada num agente independente contratado pela CIA para ir ao Camboja verificar o que se passa num determinado ponto do país, que parece estar a ser palco de acontecimentos estranhos. Quando lá chega descobre uma espécie de cratera e uma mina de pedras com estranhas propriedades, gerida por aventureiros violentos que escravizaram a população da região para trabalhar para eles. Cratera mas nem vulcânica nem de impacto.

Na verdade, vem-se a descobrir que se trata de uma cratera de saída. De saída de algo que tinha colidido com a Terra ao largo do Maine, atravessado o planeta de um lado ao outro e saído no Camboja. Algo de física sofisticada: um strangelet, um pequeno objeto de matéria estranha (i.e., matéria ultradensa composta por quarks que não formam partículas elementares e que se pensa existir nos núcleos das estrelas de neutrões). Mas de onde veio o strangelet? O que pode significar? E porque é que anda um assassino a tentar ocultar a descoberta de uma fonte de raios gama em Marte?

Esta do assassino é a mais solta das muitas pontas mal atadas do enredo. Percebe-se bem porque é que ele aparece — porque ao autor faz falta um vilão que possa pôr os heróis a mexer, e note-se que eu falo do autor e não da história. O que não se percebe bem é porque é que ele aparece, isto é, por que raio uma emissão de raios gama vinda de Marte haveria de levar à contratação de um assassino profissional. É daqueles absurdos que só fazem sentido em thrillers e em filmes de ação à Hollywood, uma solução fácil e algo tosca para o problema de como manter a tensão em alta ao longo da história.

Essas três linhas narrativas vão acabar por se juntar, claro. Depois de uma série de peripécias o agente secreto vai acabar primeiro como protetor da geniazinha, para depois a deixar sozinha e entregue aos seus próprios meios porque aparentemente é preciso ir pessoalmente a Washington falar com políticos. E claro que o assassino vai atrás da rapariga, porque emoção a sério só há quando um profissional da violência tenta assassinar uma rapariga indefesa... e quando a indefesa se defende, porque o espetador... perdão... o leitor está a torcer pelos bons e há que dar ao esp... arre... ao leitor o que o leitor quer ler.

O que mais me aborrece é que atrás de tudo isto até está uma ideia de FC que podia dar uma história muito interessante se tivesse sido mais bem explorada, uma ideia cujos contornos totais vamos descobrindo aos poucos ao longo do romance, o que é, para mim, a parte mais interessante de um todo que o é pouco. E sim, vêm aí SPOILERS. São inevitáveis. Se são alérgicos a tais bichos, saiam já daqui, vão ler outras coisas.

O que se vem a descobrir é que a fonte de raios gama não está em Marte mas sim em Deimos, a mais pequena das duas luas do planeta, e que não é natural. É um artefacto alienígena, antiquíssimo, deixado numa das crateras de Marte por uma espécie qualquer desconhecida mas, aparentemente, xenófoba, pois trata-se de uma arma sofisticada. Uma arma automática, dotada de poder de decisão próprio, capaz de disparar strangelets de dimensão variável — às tantas a Lua é atingida por um disparo bastante mais potente do que o que atinge a Terra e o resultado é uma quantidade de detritos lunares suficiente para a criação de uma espécie de anel em volta da Terra — e provavelmente de destruir o planeta por inteiro. Coisa muito para além da capacidade tecnológica terrestre. E os disparos são disparos de aviso, que constituem uma espécie de ultimato ao nosso mundo e à nossa espécie.

Com esta ideia Preston podia ter criado uma obra de FC de primeira água, desde que limasse algumas inconsistências. Mas não era esse o seu objetivo. Não há aqui nenhum questionamento sobre o nosso lugar no universo, nenhuma exploração da ideia da xenofobia, em suma, quase nenhum sumo. Há apenas uma historieta movimentada sobre vilões e heróis improváveis, pronta para transformar-se em filme de série B ou C. Sendo esse o seu objetivo, terei de admitir que foi bem sucedido, uma vez que o romance é isso mesmo. E tenho plena consciência de que há quem prefira assim: literatura escapista de entretenimento puro que quando espremida não tem grande coisa lá dentro. Eu é que não: gosto de sumo. Este livro deixou-me bastante insatisfeito, não só por quase não ter sumo mas também, ou talvez principalmente, por poder ter sido muito mais do que é. Oportunidades mal aproveitadas; são uma praga.

Este livro foi comprado.

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