sábado, 8 de agosto de 2020

João Cerqueira: A Tragédia de Fidel Castro (#leiturtugas)

A comédia, na literatura, funciona bastante melhor em versão curta do que em versão longa. E contra mim falo, que também já escrevi e (auto-)publiquei um pequeno romance humorístico, pelo que compreendo plenamente o apelo para quem escreve. Gozar com coisas que achamos que merecem gozo nem sempre cabe em contos ou vinhetas, e por vezes é preciso esticar mais a corda da troça para que esta se faça a contento. Mas se já é complicado manter o humor em alta em textos curtos, num romance inteiro é complicadíssimo. Incomparavelmente mais complicado do que escrever longas ruminações muito sisudas sobre o umbigo do escrevente, o que não deixa de ser irónico quando atentamos ao prestígio que um e outro tipo de obra alcança junto do comum dos literatos.

Por isso, ao avaliar-se um romance humorístico, há que ter esse facto em conta. Um romance humorístico não irá causar gargalhadas ao longo de todas as suas cento e muitas páginas ou mais. Provavelmente nem irá provocar sorrisos ao longo de todas essas páginas. O melhor que quem os cria consegue alcançar é enfiar neles uma densidade de piada suficiente para que o resultado não tenha trechos chatos, para que o leitor ria ou sorria de x em x páginas, para que se sinta sempre mais ou menos divertido. Mais do que isso é puro lucro. E bastante raro.

É este o meu ponto de partida para pensar neste A Tragédia de Fidel Castro (bibliografia), um romance de humor fantástico carregadinho de anacronismos em que João Cerqueira junta na panela Fidel Castro, D. Afonso Henriques, Fátima (Nossa Senhora de), Jesus Cristo e até Deus Nosso Senhor para compor uma caldeirada satírica que, como convém à sátira, pretende simultaneamente bem humorada e crítica.

(Um parêntesis: Cerqueira traduziu este romance para inglês, e a maior parte das opiniões que se encontram por aí refere-se a essa tradução. No entanto, trata-se mais de uma adaptação do que de uma tradução, pois D. Afonso Henriques desaparece, substituido por John Fitzgerald Kennedy. Isto tem um impacto bastante grande no livro, pois Castro e JFK foram rivais na vida real — crise dos mísseis de Cuba, alguém? — e muitas das situações que na versão portuguesa são pura maluqueira na versão inglesa fariam muito mais sentido. E parece-me inteiramente possível que haja mais alterações além dessa. Fecha parêntesis)

Há alguns pontos negativos neste livro. O facto de Cerqueira tender a ser palavroso é um deles e talvez o mais negativo de todos, pois por vezes perde de vista a piada, a ironia ou a necessidade de fazer avançar a trama para se entregar àquilo a que há quem chame a volúpia da palavra, o que faz com que certos trechos se tornem aborrecidos, e isso não é bom. Outro, que reconheço ser em boa medida questão de gosto apesar de estar relacionado com o primeiro, é não me parecer grandemente interessante que se perca de vista o enredo para longas divagações que lhe são laterais, apesar de se concentrar por vezes nestas boa parte da ironia presente em certos trechos. Provavelmente haverá quem goste; eu nem por isso. Há uma espécie de tensão presente em todo o romance entre a ironia e o avanço dos acontecimentos, e é frequente que aquela sirva mais para os retardar do que para os desenvolver.

Até porque toda a história é francamente absurda (o que numa obra humorística não tem nada de mal, obviamente) e a meu ver precisaria de uma prosa mais ágil e menos sinuosa para a servir. Fidel Castro, chateado porque a sua revolução cubana não está a ter exatamente os resultados que pretende, culpa D. Afonso Henriques pelo facto e decide invadir-lhe o reino. O avolumar da tensão preocupa Fátima, que pode ser ou não ser a dos pastorinhos (é), e esta vai falar com Deus, o qual decide mandar o filho outra vez à Terra para ver se resolve a questão. O problema é convencê-lo, que Jesus Cristo não está propriamente disposto a isso. Mas com jeitinho lá o convencem. Não que a segunda vinda sirva de alguma coisa, atenção: a inutilidade é absoluta e ela passa sem que ninguém dê por isso. A invasão acontece e com sucesso, dificultada apenas pela natureza do povo de D. Afonso Henriques, que como é sabido nem se governa nem se deixa governar. Mas na batalha final entre os dois exércitos, o de D. Afonso prevalece, como era desde início evidente que aconteceria. Tudo muito disparatado e anacrónico, como se vê.

Para mim, a parte mais interessante neste romance é aquela que nem pretende ter piada. Cerqueira faz nas entrelinhas uma análise que me parece bastante bem sucedida, independentemente de considerandos ideológicos, do contraste tantas vezes existente entre as intenções e os resultados em política. O seu Fidel é um homem amargurado, não só com as realidades da revolução ou com as deslealdades dos homens, mas também com aquilo que considera ter de fazer para a manter de pé, para o bem último da população. E nota-se que andou a ler os discursos de Fidel Castro, se não para compor a personagem, pelo menos para criar os trechos de um diário de reflexões que compõem parte do livro. Não sei se se trata de citações diretas, mas são pelo menos credíveis.

Este é também um livro original, outro ponto positivo. Mas divertiu-me pouco e até me aborreceu um bocado, o que para uma obra de humor é uma falha fatal. Incompatibilidades no sentido de humor, provavelmente e sobretudo, ainda que haja alguns detalhes nele que me parecem algo mais objetivos do que isso. Com mais história provavelmente teria gostado mais, com uma prosa menos prolixa também. Feitas as contas ao deve e ao haver, pareceu-me um livro apenas razoável, muito provavelmente melhorado na versão inglesa. Quem tenha um sentido de humor mais compatível irá gostar quase de certeza mais do que eu gostei, quem o tenha menos gostará menos, e é essa a natureza das coisas.

Este livro foi comprado.

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