domingo, 2 de fevereiro de 2020

Franz Kafka: A Toca

Mais um texto bastante longo, este A Toca tem tamanho de novela e, aparentemente, está incompleto. É um texto póstumo, no que de resto não está sozinho neste livro; Franz Kafka escreveu-o seis meses antes de morrer. Mas a verdade é que a incompletude lhe confere um significado que se estivesse completo talvez não tivesse.

O protagonista é um animal carnívoro não identificado, talvez qualquer coisa de semelhante a um furão, ou coisa que o valha. Mas um animal hiper-racional, descrevendo na primeira pessoa a sua luta pela construção e manutenção da toca perfeita, absolutamente confortável, capaz de o proteger dos predadores ao mesmo tempo que lhe fornece uma base para caçar. Hiper-racional e mais que um pouco neurótico, na verdade.

O animal que faz a toca é, claro está, uma metáfora para o ser humano e para a vida que muitos vivemos, encerrados nos nossos labirintos mais ou menos subterrâneos, numa constante busca neurótica pelo seu aperfeiçoamento, que no entanto, no final de contas, vem a revelar-se inútil. Porque envelhecemos, nós e a toca. Porque esta, que deve proteger-nos dos predadores e das intempéries, acaba por revelar-se sempre impotente, penetrável, e o derradeiro predador acaba sempre por arranjar maneira de entrar.

E é isso que o animal da toca de Kafka descobre na parte final da novela: que a toca tem fugas, que um predador invisível se aproxima, que pode surpreendê-lo a qualquer momento. Saber-se que este texto foi escrito nas vésperas da morte do autor confere-lhe um significado inteiramente novo: o de que o animal é Kafka, o próprio, já a sentir a iminência do fim depois de passar uma vida às voltas na sua toca. E é também esse o significado acrescido que vem de estar incompleto, de se ter interrompido abruptamente. Porque uma vida é sempre uma coisa incompleta; fica sempre qualquer coisa por fazer, qualquer coisa por dizer, qualquer coisa por ouvir. Qualquer coisa, até, por pensar. Termina sempre a meio de qualquer coisa, ou de várias coisas.

Este não é texto para todos os leitores. É um texto enovelado, meticuloso, introspetivo. Para muita gente poderá tornar-se aborrecido. Por outro lado, Kafka é frequentemente assim, pelo que quem vier lê-lo já deverá saber com o que pode contar. Eu, apesar de ter passado por um período de algum cansaço a meio da leitura, antes de me aperceber do caminho que a história acabaria por seguir, acabei por gostar bastante mais do que cheguei a temer.

Contos anteriores deste livro:

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