quinta-feira, 4 de agosto de 2022

O futuro não é pulp

O futuro não será isto
(capa de uma antologia moderna
de FC pulp)
Há quem pense que o futuro da literatura de FC e, em menor grau, de outras vertentes do fantástico, passa pelo reavivar do espírito que a coisa tinha na época em que foi mais popular, o que, para muitas dessas pessoas, implica voltar ao pulp. Eu julgo, no entanto, que isso é um erro. E neste texto vou tentar explicar porquê.

Mas antes de começar, faz-se necessário sublinhar duas notas prévias.

Duas notas prévias

A primeira é que num ecossistema literário realmente saudável tudo tem o seu lugar, e quando eu digo tudo quero mesmo dizer tudo. Todos os estilos, todas as abordagens, todos os géneros, subgéneros, movimentos, o bom, o mau, o assim-assim, o conformista, o iconoclasta, o conservador, o revolucionário, o nem carne nem peixe, tudo. Não há valor mais elevado que a variedade, porque só com variedade pode realmente desenvolver-se a qualidade e aquela fertilização cruzada que permite produzir algo verdadeiramente novo e relevante. Gosto de fazer analogias com o panorama musical porque me parece um ótimo exemplo: é um campo artístico que tem semelhanças com a literatura, apesar das diferenças óbvias, e vai mais avançado em muitos dos processos e influências que também se fazem sentir no campo literário. Ora bem, julgo que se na literatura portuguesa se promovesse a variedade como se tem promovido na música, pelo menos ao longo das últimas duas ou três décadas, o mais certo seria termos uma cena literária repleta de material tão bom e por vezes tão inovador como aquele que podemos encontrar na cena musical.

Que tem isto a ver com o que nos traz aqui? Explico: é que quando eu digo que o futuro não é pulp não estou a dizer que o futuro não tem pulp. O pulp deverá ser uma parte integrante do futuro se este for um futuro saudável. Mas não será o seu motor. Não servirá de catalizador para um regresso a uma popularidade perdida. Será apenas uma forma revivalista de fazer literatura. Uma entre muitas outras.

A segunda nota prévia é que os autores têm e deverão ter sempre a liberdade de escreverem rigorosamente o que lhes der na real gana. Se é pulp o que querem fazer, pois que o façam e sejam felizes. Não estou minimamente interessado em tentar dizer seja a quem for o que deve ou não deve escrever. Não é isso o que me traz aqui.

Dito isto, o que raio é o pulp?

O que raio é o pulp?

Muitos dos que vierem a ler isto já saberão o que raio é o pulp, mas até para esses provavelmente será útil que eu diga aqui o que entendo ao certo com a palavra. É que por vezes os entendimentos diferentes sobre definições causam um sem-fim de discussões completamente inúteis e contraproducentes, que em vez de irem ao âmago das questões se gastam na superficialidade da semântica.

Portanto vamos lá.

Pulp, no meu entendimento, pode ser duas coisas diferentes mas intimamente relacionadas.

Uma, o pulp no sentido estrito, refere-se àquela literatura de géneros a que por vezes se dá o nome de paraliteratura (embora eu torça fortemente o nariz a tal distinção), que vicejou nas revistas baratas de meados do século XX. Sempre foi literatura bastante diversificada, juntando o bom, o mau e o muito mau, mas tendia para histórias que no entender dos editores dessas publicações fossem capazes de prender o interesse dos leitores e os levar a voltar. Isto é, histórias de escrita e leitura rápidas, comerciais, razoavelmente simples, frequentemente formulaicas, nas quais predominava o enredo, a aventura, as personagens e situações sensacionais, as situações mirabolantes, em detrimento de abordagens mais calmas, digamos assim, à arte de contar histórias.

É o facto de este tipo de histórias ter predominado na época das revistas pulp, embora nunca tendo sido o único tipo de histórias nelas publicado, que leva a que, por extensão, se chame pulp, em sentido lato, a quaisquer histórias que apresentem esses elementos (não todos, talvez, mas vários), não só na época dos pulps mas em épocas mais recentes e na atualidade.

É sobre este último sentido da palavra que eu venho aqui falar.

Terão notado, entretanto, que nada do que acima ficou escrito é específico da ficção científica, ou até do fantástico. Com efeito, o pulp nunca se restringiu a esses géneros; havia revistas pulp específicas de FC ou de FC e fantasia, sim, mas também as havia de western, de policial, de espionagem, de guerra e por aí fora. Não foi por acaso que Tarantino deu o título de Pulp Fiction à sua mirabolante história sobre dois assassinos da Máfia. Mas, curiosamente, parece ser só no campo da FC e do fantástico que aparecem escritores decididos a tentar regressar aos tempos do pulp e a reutilizar as abordagens seguidas nessa altura, embora também seja perfeitamente possível que seja a minha ignorância quem aqui fala. Tendo em conta a generalizada invisibilidade da produção de ficção científica e fantástico, pode perfeitamente acontecer que outros géneros tenham grupos de cultores igualmente invisíveis. Enfim, pouco importa. O que importa é isto: penso que o pulp foi particularmente relevante para a FC e a fantasia porque estes géneros, durante algum tempo, combinaram particularmente bem com o pulp.

Sim:

A FC e a fantasia combinaram particularmente bem com o pulp

Para perceber porquê, regressemos a essa época e demos uma olhadela rápida ao ambiente cultural e tecnológico que então havia. O pulp surge ainda no século XIX, mesmo no fim, mas é entre os anos 20 e 40 do século XX que atinge o pico da popularidade. Na FC e fantasia, esse pico prolonga-se pelos anos 50 e entra nos 60, ainda que já em decadência. Socialmente, essas décadas têm algumas características muito vincadas. É uma época em que massas cada vez mais numerosas são pela primeira vez alfabetizadas nos países industrializados, o que gera um mercado de leitores de fraco poder económico, que por isso não têm capacidade para comprar mais do que a literatura mais barata que lhes fosse possível encontrar. Essa literatura chegava-lhes por via das revistas pulp. Pelo menos nos países anglófonos; por cá, tudo foi bastante mais tardio — basta ver a taxa gigantesca de analfabetismo com que chegámos à revolução de 25 de Abril —, pelo que o processo foi um pouco diferente. A nossa edição barata não se fez em revistas, mas sim em livros de bolso, e antes dos livros de bolso tivemos os folhetins publicados na imprensa, que por isso não exigiam compras dedicadas, e alguma literatura de cordel. Mas tudo num volume relativamente reduzido (ver o que ficou dito acima sobre a taxa de analfabetismo). Edição em volume só houve mesmo com os livros de bolso, e aconteceu numa época em que as condições tecnológicas já não estavam muito de feição para o pulp.

Sim, que os motivos por que o pulp se adaptou tão bem à FC e à fantasia têm também muito a ver com a tecnologia.

É que, ao contrário de outros géneros literários, a FC, a fantasia e o horror vivem muito da imaginação de quem lê. Ao ler-se uma história policial ou um enredo de espionagem, é razoavelmente fácil situar-se as personagens no seu ambiente, e as próprias personagens são facilmente imagináveis, mas quando entramos no domínio das literaturas do imaginário a porca começa a torcer o rabo. Num canto aparecem demónios, noutro surgem dragões, de uma esquina espreita um ET e no céu brilham três luas de cores estranhas, sob as quais fantasmas ectoplásmicos suspiram segredos tenebrosos. Nada é corriqueiro, tudo tende para o extraordinário.

E ambientes extraordinários combinam bem com histórias de enredos extraordinários. E mal com limitações que retiram a esses ambientes maiores que a vida boa parte da sua magia.

É assim que quando muito do pulp faz a sua transição para as novas artes narrativas feitas de imagens em movimento, a literatura correspondente começa a morrer. Mas não acontece imediatamente o mesmo com a FC e a fantasia; a tecnologia ainda não estava no ponto certo. É comparativamente fácil criar enredos de western, policiais ou de espionagem no grande ou no pequeno écran: basta pôr os atores no mundo real, ou em simulacros do mundo real criados em estúdio. Isso faz com que não haja nenhuma real vantagem da literatura face a essas outras formas de contar histórias, salvo o custo significativamente inferior da sua produção (mas não do consumo, muitas vezes, pois o sistema publicitário de financiamento de boa parte da produção audiovisual tende a deixar esta muito barata ou gratuita para o público, o que não encontra paralelo no mundo literário... e isto foi mais um prego no caixão do pulp).

Em contraste, e apesar das proezas técnicas que desde o início, nos tempos de Molière, pautaram a história dos efeitos especiais, as limitações tecnológicas geraram limitações sérias nos tipos de histórias e personagens que podiam ser transpostas para os écrans. A literatura manteve-se significativamente mais livre, pelo que pôde conservar o encanto durante mais tempo. Se alguém queria uma história com extraterrestres (ou outras criaturas, sobrenaturais ou não) minúsculos ou gigantescos teria de recorrer aos livros ou às revistas. Histórias passadas em imponderabilidade? Livros e revistas. Estranhas máquinas voadoras, ou capazes de mergulhar ou escavar até profundezas inacessíveis? Livros e revistas, apesar de tudo, que os efeitos podiam já existir mas eram ainda toscos o suficiente para atacarem a suspensão da descrença e o sentido de maravilhamento que a imaginação sem limites da leitura conseguia conservar de forma integral.

Sobretudo porque os melhores efeitos sempre estiveram ligados às produções mais caras. Ou seja: por vezes o problema era mais de orçamento do que de insuficiência da tecnologia; esta podia já existir mas a maior parte das produções não tinham orçamento suficiente para dela se servirem.

O efeito que tudo isto teve foi atrasar o processo no campo da ficção científica e da fantasia. E os pulps, nestes géneros, sobreviveram até mais tarde do que noutros géneros.

Mas claro que no fim a transferência foi inexorável.

No fim, a transferência foi inexorável

Com o desenvolvimento tecnológico cresceu a capacidade dos meios audiovisuais captarem o sentido de maravilhamento que até aí estava quase esclusivamente nas mãos da literatura. A consequência é inevitável: boa parte das histórias que se baseavam nessa faceta começaram a gravitar cada vez mais claramente para domínios em que o consumidor pudesse simplesmente sujeitar-se à experiência, sem ser obrigado a fazer um esforço de imaginação para a obter por si próprio.

Sou velho o suficiente para me lembrar do que se disse quando o fenómeno Star Wars nasceu. Ninguém falava da história. Ninguém discutia se se trataria de uma história de ficção científica ou de uma história de fantasia revestida de roupagens FC. Ninguém mencionava as personagens ou os arcos narrativos. As conversas eram sobre uma só coisa: os efeitos. Foi o espetáculo visual que atraiu as massas e tudo o resto veio a reboque. Star Wars é sentido de maravilha em estado puro. Toda a história e a filosofia artística que lhe está subjacente é pulp até ao âmago.

Penso que Star Wars marca o momento em que o pulp literário, que em 1977 já estava muito moribundo, morre de vez. Porque marca o momento em que a grande massa dos consumidores daquele tipo de histórias se apercebe de que a experiência é muito mais imediata e intensa e completa, pelo menos enquanto experiência, fora da literatura do que dentro.

Não que tenha deixado de se publicar pulp literário. O próprio Star Wars gerou uma indústria inteira de tie-ins, adaptações e obras derivadas que vêm sendo publicadas até hoje (apesar de praticamente nenhuma chegar a Portugal). Mas essas obras são isso mesmo: derivadas. São obras em que o leitor não tem de imaginar os cenários ou as personagens, tem apenas de recordar os filmes, o ambiente dos filmes, as criaturas e elementos tecnológicos dos filmes. O pulp literário, agora morto, passa a sucedâneo, a coisa criada para tentar esticar a capacidade de uma franquia gerar receitas. A merchandising. E o outro pulp, o original, reduz-se a nada.

OK, está bem, exagero um bocadinho. Mas vocês percebem o que quero dizer.

E também percebem que a evolução da experiência não se ficou por aí.

A evolução da experiência não se ficou por aí

Ao engolir o pulp, e ter um enorme sucesso com isso, o cinema entrou numa fase em que a busca incessante por uma experiência mais completa, imersiva e espetacular se transformou num dos principais motores da indústria. Essa fase dura até hoje, mas também ela está já em decadência — as bilheteiras já não são o que eram, não só mas também porque os filmes passaram a ter concorrência de peso, mais uma vez trazida pela tecnologia.

Na trilogia original de Star Wars, os efeitos foram quase todos analógicos, com muito pouca participação de computadores. Mas nessa época já tinha nascido uma nova indústria, a indústria dos jogos digitais. Olhando para o humilde Pong, surgido em 1972, dificilmente se conseguiria antever o grau de sofisticação que os seus descendentes viriam a alcançar nas décadas seguintes, muito menos que chegaria um momento em que os jogos seriam capazes de competir com o cinema pela atenção de quem procura histórias em que o que mais importa é a experiência, o maravilhamento, a espetacularidade.

E no entanto, é aí que estamos hoje.

Se o cinema deu a quem procura a experiência algo que a literatura não lhe podia dar, um imaginário detalhado e consensual, cuja espetacularidade não está dependente da imaginação de cada um mas entra, literalmente, pelos olhos dentro do espetador, os jogos também dão ao seu público algo que o cinema não pode dar, e com isso criam as condições para aprofundar essa mesma experiência: a iteratividade.

O cinema (e atenção que quando falo aqui de cinema falo de cinema e TV, i.e., do audiovisual como um todo) retirou a participação do público da equação, criando uma experiência muito intensa mas essencialmente passiva. Ao estimular a imaginação, ao forçar os leitores a imaginar os cenários, as situações, os mundos estranhos da ficção científica, a literatura manteve o interesse daquela porção do público que não dispensa esse estímulo e o grau de iteratividade que ele gera, ou pelo menos que até pode dispensá-los, às vezes, mas gosta de ser sujeito a eles de vez em quando.

Com os jogos, no entanto, a iteratividade regressa em força, ainda que de um modo diferente. Nos jogos já não é o cenário e as situações a exigirem a imaginação do público para funcionarem; esses entram tanto pelos olhos dentro como acontece com o cinema. Agora é o enredo, a própria história que fica dependente das decisões de quem a vivencia, mesmo que de uma forma imperfeita. O jogador passa a co-criador da sua própria experiência. E isso vai não só erodir o cinema mas também a própria literatura. O pouco que a esta resta para quem tem na experiência o principal interesse.

Resumindo e concluindo

Resumindo e concluindo, que isto já vai um tanto ou quanto longo, o público que fez da literatura pulp aquilo que ela foi em tempos já lá não está. Ele continua a existir, mas desandou para outras paragens, para sítios onde aquilo que procura lhe é servido em doses mais fortes do que a literatura alguma vez, pela sua própria natureza, poderia servir. Ainda regressa de vez em quando, parte dele, mas para derivados, para sucedâneos que se servem dos universos ficcionais criados e desenvolvidos noutros media em vez de serem uma criação completa. Por outras palavras, mesmo aquela porção dele que continua disponível para ler, já não está disponível para pulps originais criados na e pela literatura. E é leitor ocasional, não regular.

O que tudo isto implica é que tentar replicar o velho pulp como forma de alcançar sucessos pretéritos é ambição completamente fútil. Não vai acontecer. Não é, muito simplesmente, possível.

Portanto, caros escritores, escrevam pulp se é isso que vos apetece escrever, por tudo aquilo que eu disse a abrir este artigo. Mas se o fazem por acharem que é esse o caminho do Olimpo literário em que ambicionam entrar, desenganem-se. Não é. O pulp, hoje, é um revisitar revivalista de uma época passada, e disso não passará nunca mais. Deve ter o seu lugar, como tudo deve ter o seu lugar, mas na crista da onda nunca mais estará.

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