quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Miguel Carqueija: Hiperespaço

Este conto podia ter sido razoável. A ideia, aliás, é boa. Uma nave, no Hiperespaço (bibliografia), é palco de uma situação velha como o mundo: um triângulo amoroso entre os dois homens que protagonizam a história e uma mulher, que nunca aparece, mulher do primeiro e amante do segundo. Pelo meio, Miguel Carqueija arranja umas cobiças e umas falhas de caráter para criar uma ameaça de crime perfeito.

São bons ingredientes para quem saiba o que fazer com eles.

Mas Carqueija comete dois erros que em combinação se revelam fatais: escreve o conto na primeira pessoa, com a perspetiva centrada no marido traído, e tenta dar à história um final surpresa. O resultado é... tosco.

Um final surpresa, para ser eficaz, para ser bem feito, não pode violar a lógica narrativa que ficou estabelecida até lá chegar. Tem de forçar a uma revisão dessa lógica narrativa, tem de levar a vê-la com novos olhos, mas não a pode violar. Os elementos do final surpresa têm de já lá estar, escondidos mas presentes. O que não pode nunca acontecer é, por exemplo, uma personagem sentir desespero por se encontrar numa situação sem saída, e depois, magicamente, tirar uma carta da manga que dá uma reviravolta completa à situação. Pode fingir desespero, pode mostrar desespero, mas não pode senti-lo.

Ora, Carqueija, ao escrever o conto na primeira pessoa, põe o leitor na cabeça do protagonista. E ao fazê-lo perde a possibilidade de criar um verdadeiro final surpresa que não se transforme numa violação grosseira da lógica narrativa do conto.

Bastaria ter usado uma perspetiva exterior a ambas as personagens, mostrando os atos delas sem nunca nos dizer o que elas sentem, só o que parecem sentir, para fazer um conto no mínimo razoável. Mas não. Ao errar a mão na escolha do ponto de vista, o que fez foi um mau conto.

Contos anteriores deste livro:

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