sábado, 13 de agosto de 2022

João Barreiros: A Agonia da Arte Reprimida

Algumas das histórias que compõem este "romance em mosaicos", como os autores lhe chamam, são só razoavelmente autocontidas, provavelmente por terem sido concebidas mais para fornecer estrutura ao livro como um todo do que para contar propriamente uma história, ou uma parte da história. É o caso das histórias que abrem o livro, e também das que o encerram, se a memória não me falha (sim, que isto é uma releitura, apesar da leitura original já ter umas décadas e ser da edição original, não desta edição revista).

Mas há outras que poderiam perfeitamente ser publicadas sozinhas numa antologia, revista ou fanzine, e ninguém se aperceberia de que fazem parte de um todo maior. E na verdade algumas foram-no; A Arder Caíram os Anjos, por exemplo, teve publicação independente no fanzine brasileiro Somnium.

Esta novela de João Barreiros, no entanto e que eu saiba, não foi publicada fora do contexto deste livro. Mas a verdade é que podia perfeitamente ter sido.

A Agonia da Arte Reprimida (bibliografia) leva o leitor ao Canadá, ou mais concretamente a uma cidade canadiana que funciona como enclave de boa vizinhança entre os terrestres e "hóspedes" extraterrestres de várias espécies. E são mesmo hóspedes: fazendo lembrar a situação da série de animação American Dad (cuja criação é cerca de uma década posterior à do Terrarium, note-se), os extraterrestres vivem com famílias humanas num ambiente tipicamente americano de burguesia suburbana. Uma dessas famílias é a do protagonista principal da novela, um adolescente que, como qualquer adolescente, se ressente de o terem metido numa situação que não controla. O hóspede da família é um ET vegetariano, o que leva toda a família ao veganismo... e ele que adora hambúrgueres!

Mas os seus problemas estão só a começar e ele nem sabe, o que de resto é um tema omnipresente nas ficções de João Barreiros. Os seus protagonistas são quase invariavelmente pobres desgraçados cujos mundos são postos de pantanas por acontecimentos que eles não controlam minimamente e só a sorte, ou rasgos de inspiração, ou outros acontecimentos que controlam ainda menos, os levam à sobrevivência... quando levam.

Pois o bom do Joel, assim se chama o miúdo, nem sabe o que o espera. As coisas começam a descambar ainda mais do que já estavam quando encontra um jovem vulpis. Vulpis? Sim. Outro ET, uma espécie particularmente agressiva que passa a infância como animal irracional numa luta até à morte pela sobrevivência e só ganha inteligência quando se aproxima da maioridade... altura em que ganha acesso às memórias genéticas transmitidas pelo pai e sente a compulsão de o procurar e assassinar para ascender à chefia do clã.

Detalhe relevante: os vulpis juvenis também têm um mecanismo de cunhagem psicológica, semelhante ao dos pintos de várias espécies de aves, que os levam a vincular-se à primeira criatura senciente que encontram quando saem da fase irracional. E qual é a primeira pessoa que este vulpis específico encontra, qual é? O Joel, está claro.

Vida de pantanas. O adolescente mergulha de cabeça, mais involuntariamente que de moto próprio, numa vida dupla, arrastado pelas necessidades do vulpis. E do pai do vulpis, pois este decide encarregar o filho de uma missão. E isso acaba por lhe salvar a vida.

É que a cidadezinha começa a ser palco de misteriosos desaparecimentos de crianças. E é precisamente Joel quem descobre o que lhes aconteceu... mas não a tempo de salvar a família de um destino semelhante.

Há um assassino à solta. Um assassino em série. Um assassino interplanetário em série, perseguido no seu planeta de origem, acabando por encontrar refúgio na Terra por um oceano de sorte. Ou de azar. Mas ele acha-se artista e revolta-se contra todos os que procuram reprimir a sua arte. E cá está o significado do título.

É outra história muitíssimo boa, claro. Das tais histórias com tudo no sítio.

Contos anteriores deste livro:

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