sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Miguel Carqueija: Não Pintem o Rosto do Palhaço

As comédias românticas de sessão da tarde têm várias coisas em comum. Uma delas, provavelmente a mais importante, é serem tão formulaicas que na maioria dos casos basta ver alguns minutos do início para já se conseguir prever o final com alguma segurança. Outra é dirigirem-se a um público predominantemente feminino, pelo que é muitas vezes a rapariga que salva as situações problemáticas em que se mete o seu interesse romântico, invariavelmente bonito e bom rapaz (pelo menos lá beeeem no fundo) mas um tanto ou quanto apatetatado, coitado.

Miguel Carqueija, aparentemente, gosta de fazer misturadas. Não é má ideia, em abstrato: misturar géneros e introduzir elementos inesperados nas histórias pode ser uma boa forma de alcançar alguma originalidade, ainda que seja conveniente fazê-lo com cuidado porque há coisas que são muito pouco compatíveis (ou nada). Aqui, neste conto, misturou um whodunnit com vida de circo e ficção científica e acrescentou-lhe um final de comédia romântica. E o resultado não é mau, ainda que a comédia romântica esteja claramente a mais.

O protagonista de Não Pintem o Rosto do Palhaço (bibliografia) é um homem desesperado para encontrar emprego, que finalmente o arranja num circo como maquilhador de um palhaço que é a criatura mais detestável à face da Terra. O ambiente é um futuro indeterminado, no qual a tecnologia da hibernação está desenvolvida e traz benefícios a quem tem dinheiro suficiente para dela usufruir. Há no Brasil, aliás, uma cidade inteira dedicada a esse negócio. Hibernópolis. Pois.

É esse o único elemento futurista em todo o conto, o que nem chega a contar muito como ponto fraco. Noutro contexto sê-lo-ia, e dos fortes, mas o ambiente circense é de tal forma anacrónico que não é grande ataque à suspensão da descrença supor que continuará a sê-lo no futuro. Caso diferente é a polícia; vê-la aqui atuar como numa história de Agatha Christie é... hm... bizarro.

Sim, que não há whodunnit sem polícia. E sem homicídio. Por coincidência, ou talvez não, este acontece na tal cidade da hibernação, que o circo visita para recuperar o ilusionista da companhia que resolvera fazer umas férias numa cápsula criogénica. E o principal (ou único) suspeito é, naturalmente, o nosso protagonista principal.

Como disse, o conto não é mau. A relação entre o palhaço e todos os outros, especialmente o protagonista, está bem estabelecida, e isso é importante para o que acontece a seguir, e mesmo os diálogos, apesar de um tanto ou quanto simplórios aqui e ali, funcionam bem. E o elemento de whodunnit, que como é óbio inclui a típica revelação do criminoso (que como é igualmente óbvio não é o suspeito inicial), do móbil e do método do crime, está razoavelmente bem amarrado.

Mas também não é bom, o conto. Todos os elementos formulaicos que contém, e são muitos, impedem-no de o ser, a quantidade de deus ex-machina também o impede e aquele final à comédia romântica, com amor instantâneo à mistura, dá cabo do qualquer possibilidades que ainda pudessem restar.

Sim, porque tudo é desvendado pela trapezista. Que, vejam só, é membro de um certo Clube dos Amantes de Mistério, no qual é colega do filho do delegado da polícia que é encarregado de investigar o caso. Coincidências do caneco, hã? E não é que a rapariga se perde de amores pelo nosso protagonista, apesar de só aparecer na história já em Hibernópolis? Fantástico.

Mas pronto, é um conto razoável. Melhor do que vários dos anteriores, o que já não é mau.

Contos anteriores deste livro:

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