quinta-feira, 14 de novembro de 2019

FC portuguesa? Existe?

Existe. Próxima pergunta.

Não, esperem, voltem cá. Este título tem mais que se lhe diga e a resposta é mais complexa do que isto. Porque vem na sequência de um outro artigo em que tentei perceber o que significa a expressão "FC portuguesa", o qual surgiu em resposta a um artigo da Cristina Alves (ou divagação, como ela lhe chama) que me causou várias discordâncias.

Uma dessas discordâncias é a afirmação da Cristina de que "temos poucos autores e poucas histórias". É uma discordância parcial, porque depende da forma como olharmos para o problema e de quanto o restringirmos à FC, e a uma FC "pura e dura", seja lá isso o que for. Se o olharmos numa perspetiva histórica, abrangendo toda a produção existente até hoje, não temos assim tão poucos autores como isso, especialmente se não tentarmos definir "FC" de uma forma demasiado estreita. E obras tampouco, apesar de termos uma percentagem talvez demasiado elevada de autores de uma só obra, ou de poucas, aqueles autores que tentam uma vez ou duas, não conseguem vingar (seja lá o significado que essa palavra tem num meio como o da FC portuguesa) e desistem.

A ideia de que temos poucas coisas publicadas foi o que me levou a dar início à sucessão de sites que vieram a dar no Bibliowiki, julgando ingenuamente que uns meses de trabalho e ficava a coisa feita. Vão quase vinte anos desde a primeira encarnação da ideia, e está muito longe de ficar completa. Não temos poucas coisas publicadas. Também não temos muitas. Temos um número razoável delas. Podem é não ter a qualidade desejável, na sua maioria, mas isso é outra questão.

A verdade é que, durante muito tempo, não tivemos produção anual suficiente para construir uma antologia da melhor FC do ano, mesmo incluindo excertos de romances, e mesmo incluindo coisas francamente más para compor o volume, se necessário. Houve algumas exceções, anos fora de série com uma produção particularmente abundante (1993, por exemplo), mas eram exceções a confirmar a regra. No entanto sempre tivemos material suficiente para fazer isso de cinco em cinco anos, ou de década em década, e o volume resultante não sairia mau. É pena que nunca ninguém tivesse tido essa iniciativa (por outro lado ainda vamos a tempo; antologias retrospetivas podiam ser boa ideia), ainda que eu compreenda perfeitamente que quem o fizesse enfrentaria muito trabalho e se calhar algumas confusões para pouco retorno.

Mais: as coisas estão hoje melhores do que estavam há uma década ou duas, apesar da frustração que causa ver a imensa lentidão e os avanços e recuos do progresso. Temos mais gente a escrever FC, temos mais gente a publicar FC, temos uma variedade maior de abordagens e, até certo ponto, de perspetivas, temos mais gente atenta ao que pode aparecer fora dos sítios "do costume", e etc. Falta-nos público, como sempre faltou, falta-nos massa crítica dedicada a separar o trigo do joio, falta-nos uma porção de coisas, mas há alguns progressos. Hoje já seria possível publicar-se uma antologia anual que republicasse contos e excertos de romances de FC, embora continuasse a ser necessário incluir nela material fraco para compor o volume (o que, sendo os gostos o que são, e havendo tanta gente a tecer grandes elogios a coisas que pouco valem e/ou a desprezar as obras mais interessantes, talvez nem fosse necessariamente mau), e ainda que em certos anos particularmente fracos talvez houvesse dificuldade em arranjar material.

Claro, esta discordância vai entroncar com a anterior. Será toda a FC que se produz em Portugal realmente portuguesa? Não é. Há autores que não saíram da imitação acrítica do que vem de fora, julgando que essa imitação pode levá-los a obter um sucesso maior do que se tentassem ser genuínos. O raciocínio parece ser: o que se faz lá fora tem sucesso, o que se faz cá dentro não tem, portanto vou fazer como se faz lá fora para ver se tenho sucesso. O problema com esse raciocínio é, claro, que o que se faz lá fora só muito raramente tem sucesso. Estas coisas são icebergues, com uma grande massa submersa invisível a manter à tona a pequena fração do material bem sucedido. Se e quando estes autores compreenderem que a literatura com sucesso cá é aquela que é genuína — excluindo destas contas a literatura que tem sucesso porque o autor é conhecido por outras vias — no contexto português e/ou de cada autor em concreto, poderão incorporar as influências externas na sua própria verdade e obterão resultados bem melhores e bem mais portugueses. O João Barreiros é um bom exemplo de alguém que fez isto. Não por acaso, é o nosso melhor autor de FC.

Mas isto já entra na conversa sobre "o que fazer?" E essa é outra conversa.

2 comentários:

  1. Mas será que as editoras querem obras (no âmbito fantástico, FC, e afins) que não sejam mais ou menos "cópias" dos best sellers estrangeiros?... Fico à espera de resposta.

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    1. Há n formas diferentes de publicação hoje em dia. As editoras são só uma delas, e há editoras e editoras, elas não são uma massa amorfa toda igual. Se uma não se interessar, outra pode interessar-se. Ou não, e publica-se de outra forma.

      O «Carrie» do King foi rejeitado por 30 editoras. O «Duna» do Herbert foi rejeitado por 23. Ambos os livros acabaram não só por ser publicados como por se tornar êxitos estrondosos. E como estes casos há muitíssimos outros.

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