Recentemente, a Cristina Alves pôs-se a divagar lá no seu blogue sobre o futuro da ficção científica portuguesa, numa perspetiva de divulgação lá fora, e eu discordei de tanto do que ela lá escreveu que achei que tinha de escrever uma espécie qualquer de resposta. Ou de respostas. Provavelmente não será só uma, até porque ninguém tem paciência para ler textos longos na internet. E porque, para compreender realmente as coisas, é útil isolar as questões tratando mais tarde das suas interrelações.
A minha discordância relativamente à Cristina, ou pelo menos ao que eu percebi das ideias dela a partir do que deixou escrito, o que pode não ser bem a mesma coisa, tem raízes nas próprias premissas da questão. Porque ela fala de FC portuguesa como sendo uma FC que envolva "as características mais comuns dos portugueses" ou incluam "referências ou tradições portuguesas" ou os "elementos fantásticos presentes na narrativa tradicional", e eu, mesmo percebendo que isto são só exemplos que ela dá e não significa que ela julgue que tudo se resume a isso, não deixo de achar que essa é uma forma superficial de encarar a questão.
Não que essas coisas sejam para pôr de parte. Não. Todas essas características ou tradições podem ser bem usadas para ajudar à portugalidade das histórias, mas não são de forma alguma suficientes para transformar seja o que for em FC portuguesa.
Porque a FC é necessariamente portuguesa se quem a faz estiver inserido na cultura portuguesa, na vivência portuguesa, no dia-a-dia português, e evitar a tentação de se entregar ao simples mimetismo acrítico do que vem de fora. E sem isso não o é, por mais elementos mais ou menos portugueses que possa conter.
(O mesmo se aplica, diga-se em forma de parêntesis, a qualquer outro género artístico. Não é exclusivo da FC)
Alguns exemplos para ajudar à compreensão do que quero dizer:
Um autor americano pode escrever um livro inteiro centrado na figura do Adamastor que dificilmente a literatura que faz deixará de ser profundamente americana, porque dificilmente deixará de conter a perspetiva americana sobre o mundo.
Eu em tempos escrevi um conto chamado Littletown, sobre um homem que vai fazer turismo para um corpo alugado num cenário de cowboys instalado num satélite habitável de um planeta gigante. Um conto inspirado em parte pelos filmes de faroeste que vi em miúdo, em parte pela forma de escrever do Dick, mas apesar disso, de ter à superfície tanto de americano, esse conto é das coisas mais portuguesas que escrevi, pelo menos até às ficções das passarolas. Porque a inspiração mais forte foi a minha vivência algarvia, cheia de coisas enxertadas para turista ver, desde Vilamoura, que mais parece uma aldeia nórdica enfiada na costa algarvia, até aos jipes pintados em padrões de zebra ou girafa, que levam os bifes a passear pela serra em "safaris" transplantados. Foi essa, e não a pintura superficial de faroeste, a inspiração principal. Esse é mais que um conto profundamente português, na verdade: é um conto profundamente algarvio.
Inversamente, um autor cuja maior ambição seja ser um "Tolkien português" ou um "Asimov português" dificilmente chegará algum dia a produzir coisas realmente portuguesas, independentemente do que diga o seu cartão de cidadão e por mais coisas portuguesas que enfie nelas, a menos que queira e se consiga libertar da mera imitação.
Em suma: aquilo que realmente transforma a FC em portuguesa é a verdade que ela possa conter. A verdade de um autor inserido na nossa realidade, de um autor que a vive, de um autor que a tenha como referência, mesmo que essa referência não seja óbvia.
É perfeitamente possível e perfeitamente legítimo que dessa verdade nada saia de universal. É em parte por isso que me parece tão negativa a mania nacional de procurar validação no exterior, se não em exclusivo pelo menos prioritariamente. Mas é igualmente possível e legítimo que saia algo de universal, porque a cultura portuguesa não é estanque há séculos (se é que alguma vez o foi, o que é duvidoso) e está aberta a influências externas, mesmo sem contar com o simples facto de que português é gente como toda a gente e há vivências e perspetivas que nos são mais ou menos comuns a todos. Tem é de ser uma verdade com raízes aqui, neste espaço civilizacional e/ou geográfico e/ou populacional e/ou cultural e/ou por aí fora.
Óbvias ou não.
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