São coisas das traduções. Há uma novela de Franz Kafka que é famosíssima com o título de A Metamorfose, mas quando Álvaro Gonçalves pegou nela resolveu chamar-lhe A Transformação (bibliografia). De alemão não sei mais que umas coisinhas aqui e ali, pelo que não sei avaliar quem tem razão, se Gonçalves, se a tradição. Mas o que está por trás dos dois títulos é a mesma obra.
Bem, mais ou menos a mesma obra. De novo há detalhes de tradução que alteram até certo ponto a perceção que o leitor português dela tem. Um exemplo é o do animal em que Samsa se transforma, tradicionalmente apelidado de barata, mas aqui não. Aqui, é um bicho indefinido — o que, segundo já li por aí, se adequa melhor ao original em alemão — que se locomove com dificuldade apoiado em múltiplas "patinhas". Perde-se em familiaridade (e em repugnância, que poucos bichos a causam mais que as baratas) o que se ganha em fidelidade ao original.
Mas de resto, sim, é a história tal como já é sobejamente conhecida, mesmo desconfiando eu que esse conhecimento, em muitos casos, é mais de ouvir dizer do que de leitura feita. Gregor Samsa, um jovem caixeiro-viajante cioso da sua profissão, a morar provisoriamente em casa dos pais, descobre-se uma fatídica manhã em pleno processo de metamorfose. E logo num dia em que deveria partir para mais uma viagem plena de sucesso comercial.
E a novela vai seguindo a sua lenta degenerescência e os problemas que causa à família — os pais e a irmã — a qual, apesar de tudo, mantém um notável estoicismo até quase ao final. Lenta degenerescência porque a transformação vem acompanhada por incapacidade em alimentar-se, a qual leva primeiro à letargia e por fim ao desfecho da história. E quanto aos problemas que causa à família, são fáceis de adivinhar, ainda que Kafka os menorize bastante, o que de resto é a característica mais curiosa desta história.
É que embora toda a situação seja coisa típica de uma história de terror, há muito pouco medo nesta novela. Há tristeza, há alguns sustos, há indiferença, há repugnância, há até humor nos pensamentos do bom Gregor e na forma como eles revelam um indivíduo miudinho, tão capaz de se resignar a qualquer coisa quanto incapaz de um rasgo de imaginação que fosse, um rasgo de imaginação que lhe possibilitasse a compreensão das ramificações que a transformação sofrida iria inevitavelmente causar na sua vida antes que essas ramificações como que o esbofeteassem, surpreendendo-o e entristecendo-o sempre. Mas terror? Quase não existe.
Porque no fundo, parece-me, o terror é uma emoção demasiado intensa para a espécie de burguesia acomodada que Kafka retrata. Não é de bom tom mostrar emoções, sobretudo se intensas. Pode ruir o mundo à volta daquela família, podem acontecer-lhes os desastres mais insólitos, que o importante é manter a dignidade intacta e tudo aceitar com o fatalismo possível, não dar parte de fraco, e sobretudo nunca, mas nunca, mostrar o mais pequeno sinal seja a quem for de que no seio do lar algo de anormal se passa. E assim, Gregor Samsa transforma-se em inseto e toda a gente age quase como se nada se passasse, ainda que a condição de Gregor se imponha de vez em quando aos demais.
Esta é, obviamente, uma novela brilhante e, a par de O Processo, talvez a obra que mais contribuiu para a criação do adjetivo "kafkiano", embora não sejam estas as únicas obras do autor a merecê-lo. E esta tradução faz-lhe justiça, até porque o incómodo que eu senti com as alterações da releitura não será decerto sentido por um leitor de primeira viagem.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Por motivos de spam persistente, todos os comentários neste blogue são moderados. Comentários legítimos passam, mas pode demorar algum tempo. Como sempre acontece, paga a maioria por uma minoria de abusadores. Parece ser assim que o mundo funciona, infelizmente.