domingo, 13 de dezembro de 2020

Leopoldo Lugones: Os Cavalos de Abdera

Mais uma vez, numa lista que só não é infinita porque a quantidade de obras já produzidas por mãos humanas é sempre finita, estamos perante um conto profundamente político, semioculto por trás de uma história fantástica. À superfície estamos na Grécia Antiga, na cidade trácia realmente existente de Abdera. E Leopoldo Lugones fala-nos de Os Cavalos de Abdera (bibliografia), um peculiar grupo de equinos que, de tão bem tratados pelos seus donos (os quais, no entanto, não deixam de os explorar como qualquer dono explora os seus animais), começam a ganhar características humanas. Incluindo o sentido de justiça e vontades próprias.

Os cavalos da antiga cidade helénica de Abdera são uma metáfora que me parece óbvia dos membros das classes inferiores da sociedade estratificada, de uma forma geral, mas sobretudo da sociedade industrial da viragem do século XIX para o XX. Uma metáfora dos explorados. Dos oprimidos. Daqueles que realizam o trabalho de que outros irão desfrutar. É essa injustiça básica que os vai levar à revolta quando dela tomam consciência, e boa parte do conto consiste na descrição da revolta e do paroxismo de violência a que ela dá origem. Mas a mensagem de Lugones é ambígua.

E é ambígua porque ao mesmo tempo que parece reconhecer que a revolta dos cavalos se deve àquilo que percebem como uma injustiça básica na distribuição do trabalho e do prazer, parece também dizer que a culpa inicial de toda a turbulência cabe aos donos, não por os tratarem mal, mas por os tratarem bem. Ou seja: parece dizer que o "pecado original", digamos assim, teria sido o tratamento humano dado aos animais. Isto é sublinhado pelo final, quando uma força superior, irresistível, divina, põe os cavalos em fuga e assim restaura a ordem. Por outras palavras: a ambiguidade é apenas relativa.

Lugones foi assim uma espécie de Helena Matos ou Zita Seabra do início do século XX. Começou socialista, pelo menos teoricamente, e depois seguiu sempre rumo à direita até acabar fascista. Não sei ao certo em que fase desse percurso estava ele quando escreveu este conto, em 1906, embora saiba que oito anos depois já era um nacionalista conservador, a um passinho do fascismo propriamente dito. Mas pelo conteúdo do conto quer-me parecer que já tinha deixado o socialismo muito para trás, se é que alguma vez foi realmente essa a sua ideologia.

Mas literariamente? Bem, literariamente o conto é bom.

Textos anteriores deste livro:

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