terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Andy Weir: O Marciano

Quando se tenta falar de livros muito populares há sempre aquela dúvida básica sobre o que dizer que ainda não tenha sido dito. OK, existe sempre a perspetiva pessoal, um certo ponto de vista que cria alguma variação naquilo que de outra forma seria a mera monotonia dos factos descritivos. Mas a verdade é que o facto de o livro ser muito popular não significa que todos os que potencialmente poderão vir a ler o que sobre ele se diz já o tenham lido, pelo que é necessário fornecer o devido contexto, e é aí que o risco da monotonia é mais severo. Mas há que o correr, não é? Então corramo-lo.

Uma expedição tripulada a Marte é abreviada, poucos dias depois do pouso, pelas consequências de uma súbita tempestade, daquelas que costumam assolar o planeta de vez em quando, envolvendo-o parcial ou completamente numa densa camada de poeira. Os astronautas de uma tripulação internacional partem à pressa, mas durante a fuga perdem o contacto com um dos seus, pois este tinha sido atingido por um bocado de detritos soprado pelo vento e perdera os sentidos. Todos o julgam morto. Mas não está, e a história de O Marciano (bibliografia) é a história desse astronauta e da forma como vai usando as suas competências e o material que tem à disposição para se tentar salvar, enquanto a Terra procura apressadamente (mas sem grande esperança) maneiras de o ir buscar.

Ficção científica, obviamente, e da dura, isto é, daquela que se serve profusamente de aspetos técnicos sobre as características físicas e químicas do ambiente em que as personagens se movem para fazer avançar o enredo. Não que esteja tudo correto a cem por cento. Quem procurar por erros certamente os encontra, e existe um, logo a abrir o livro, que é grande e crucial para todo o enredo: a cena em que o náufrago é deixado sem sentidos por algo que o vento atira contra ele é completamente irrealista porque, embora existam ventos em Marte, e rápidos, a pressão atmosférica é tão baixa que eles pouca força acabam por ter. Mas na FC, mesmo na dura, sempre houve alguma tolerância com detalhes irrealistas que sirvam para pôr as coisas a andar, especialmente se os autores conseguem envolvê-los em palavreado técnico que soe plausível. E Andy Weir certamente conseguiu.

Mas o principal trunfo deste romance não é nada disso: é o protagonista e a sua personalidade. Weir cria aqui uma das grandes personagens da FC, um tipo inteligente, cheio de recursos, mas também irreverente, iconoclasta, com um sentido de humor retorcido e muito próprio, pelo qual o leitor dá por si a torcer mesmo sabendo que é inútil perder tempo a fazê-lo pois no fim tudo irá ficar bem por mais desesperada que a situação pareça. Porque isso é claro ao longo de todo o livro, o que é um dos seus pontos f... hum... bem, suponho que comercialmente será ponto forte porque é mais fácil vender histórias assim, especialmente no mercado americano. Mas eu, e imagino que leitores como eu, teria preferido um enredo menos previsivelmente de tecnothriller. Para mim, é ponto fraco.

Mas não muito fraco, reconheço. É que se o grande trunfo do romance é o protagonista, para pessoas com inclinações mais técnicas, pessoas mais viradas para a análise e resolução de problemas, outro trunfo reside na forma como ele vai ultrapassando um a um cada obstáculo que o planeta e a escassa tecnologia (e mais escassa ainda comida) que tem ao seu dispor lhe vão pondo à frente. As soluções técnicas, de uma forma geral credíveis, conferem um ar de realismo a toda a odisseia que chega a tornar-se fascinante, ainda que não me custe nada a crer que para pessoas que não tenham grande interesse pela tecnologia ou pelos ambientes planetários exteriores à Terra elas sejam em boa medida um empecilho. Ora, esse desembaraço na resolução de problemas está intimamente ligado ao desenlace do livro, pelo que não posso condená-lo por inteiro. Só em parte, pois no fundo nada impediria Weir de colocar o protagonista a resolver todos os problemas menos um, evitando assim a previsibilidade do desfecho.

Feitas as contas, este é um bom romance de FC. Não creio que seja um grande romance de FC, porque um protagonista memorável e um conjunto de peripécias fascinantes não chegam para tanto, mas é um bom romance de FC. Compreendo o seu sucesso, mesmo talvez não tendo gostado tanto do livro como outros leitores.

Este livro foi comprado.

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