sexta-feira, 9 de agosto de 2019

David Soares: No Muro (#leiturtugas)

Já a caminho do atual estado de insuportável parnasianismo mas ainda algo longe de lá chegar, David Soares fez deste No Muro o conto em que talvez tenha roçado mais de perto pela ficção científica.

A princípio não parece. De facto, nem parece ter nada de fantástico; parece não passar de uma daquelas histórias mainstream, tão do agrado de certos escritores e leitores, mas sobretudo dos primeiros, em que alguém descobre os livros e, ao descobri-los, descobre neles uma "centelha do divino" que os separa, e por conseguinte a quem os faz e os aprecia, da ralé ignara. Um dia talvez escreva sobre esta ideologia de deificação da palavra escrita e do mal que ela faz à própria propagação da palavra escrita, mas não será hoje. Talvez no dia em que escrever a sério e detalhadamente sobre o pulp, que corresponde ao extremismo de sentido oposto. Embora talvez não baste um dia para dizer bem o que tenho a dizer; se calhar preciso de uma semana.

Mas adiante.

Neste conto, o protagonista herda do pai uma vasta biblioteca. E põe-se a descobri-la quase por acaso, acabando por perder-se de amores por ela "como as meninas se afeiçoavam aos prometidos maritágios". Sim, é citação direta. Para ficarem com uma ideia da letradice desta prosa. E tantos amores sente que panica com a possibilidade de lhe roubarem a biblioteca ou lhe acontecer algum outro desastre do mesmo calibre. Vai daí, tem uma ideia daquelas de lâmpada acesa por cima da moleirinha: vai fazer um muro na sua propriedade. E dentro de cada tijolo desse muro vai encafuar um livro.

E é aqui que o conto se vira para a ficção científica. Porque o muro fica quando o seu criador se vai e a História de H grande continua a desenrolar-se, inexorável, desembocando em distopia à moda de Fahrenheit 451, com fuzilamentos, queima de todas as bibliotecas, promoção violenta da ignorância mais atroz. Permanece o muro, com a sua biblioteca secreta dentro. Preciosa, chama-lhe David Soares. Inerentemente preciosa, sugere, atribuindo às palavras dos livros uma qualquer alma mística. Inútil, digo eu. Porque sem ter quem as leia, e nada existe na história a sugerir que alguma vez virá a existir alguém que as leia, as palavras são um nada que se desfaz com o tempo. Sem uma criatura humana para lhes dar sentido, não passam de rabiscos sem qualquer significado. Não há superstição literata que lhes valha. Alma... hah... deixem-me rir.

Na contabilidade dos detalhes de que é feita a literatura, este é um conto razoável. Está bastante bem estruturado e de uma forma geral bem escrito, apesar dos ataques de parnasianismo espalhados aqui e ali. Mas a história que nele se conta é derivativa de obras melhores, em parte porque concretizadas sem o recurso a delírios místico-poéticos sobre a natureza das palavras. Há aqueles, obviamente, para os quais são precisamente esses delírios que elevam este conto mais alto; para mim, contudo, e tenho absoluta certeza de não estar nisso sozinho, são aquilo que mais conta em seu detrimento. As palavras que uns e outros leem são as mesmas. Mas é a criatura humana que as lê que lhes confere significado e lhes dá ou retira importância.

E é por isso que a experiência de leitura é inerentemente subjetiva.

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