segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Ednice Peixoto: Espelho, Espelho Meu

Uma das coisas que eu digo com frequência sempre que a conversa deriva para a sempiterna dialética entre forma e conteúdo na literatura, é que, para mim, o conteúdo tende a determinar a forma. O que quero dizer com isto é que há histórias que praticamente exigem um texto duro, seco e rápido, ao passo que outras quase o requerem pausado, elaborado, até poético. E quando há uma dissonância entre a forma que a minha sensibilidade de leitor afirma que uma história devia ter e aquela que realmente tem, o texto soa-me a falso, a coisa artificial e fabricada. O que obviamente é, mas, para que a suspensão da descrença se faça por forma a que o leitor acredite no que está a ler, procura parecer não o ser.

Neste seu conto, Ednice Peixoto resolveu poetizar a anorexia. Espelho, Espelho Meu, que poderia ter um subtítulo como Haverá Alguém Mais Gorda do que Eu?, é uma vinheta escrita em prosa poética sobre essa disfunção na autoimagem, com tudo o que lhe está associado. E eu senti-o dissonante. Não por completo, mas em parte sim. Porque para a minha sensibilidade literária, a elaboração da prosa choca com a dureza da realidade, que nada tem de poético. Poetizá-la é como poetizar um cancro, porque também a anorexia corrói as pessoas por dentro. Pode-se fazer, evidentemente, e até é provável que haja quem goste. E até é possível que essa poetização seja a única forma que quem passa por tais problemas tem para conseguir falar deles. Literatizando-os. Mas eu, decididamente, não faço parte desses grupos.

Textos anteriores desta publicação:

Sem comentários:

Enviar um comentário

Por motivos de spam persistente, todos os comentários neste blogue são moderados. Comentários legítimos passam, mas pode demorar algum tempo. Como sempre acontece, paga a maioria por uma minoria de idiotas. Parece ser assim que o mundo funciona, infelizmente.