O fantástico de inspiração católica tem uma certa tradição em Portugal, ao ponto de ter sido cultivado por alguns dos nossos melhores escritores. De resto, foi há muito pouco tempo que se falou aqui mesmo na Lâmpada de alguns contos de Eça de Queirós que se integram nesse ramo da literatura. Pois bem: Daniela Vieitas, com esta Deriva Divina, apresenta mais um.
A protagonista da história é uma adolescente de 15 anos que, segundo a tradição minhota (a autora é de Viana do Castelo) e devido à sua formosura, é escolhida para mordoma das festas religiosas de uma vila de pescadores destinadas a conquistar as boas graças do mar durante o ano seguinte. Enorme honra e orgulho para a família, embora a própria rapariga se submeta a todos os preparativos necessários com as suas reservas, que só se avolumam quando, no dia da festa, como que corporiza a Virgem Maria, percorre a vila em procissão durante a qual todos tentam tocá-la para serem abençoados, e acaba por sair para o mar num bote a remos.
Aí, em vez de abençoar o mar como estava nos planos, paralisa, não se percebe bem se por medo se por uma amplificação súbita do desconforto que sente desde o início com aquele papel. E essa paralisia vai levar ao desfecho do conto, que é aquilo que enquadra declaradamente esta história na literatura fantástica. Não contarei muito sobre ele, pois é esse o fulcro de toda a história, concebido para ser algo surpreendente. Digamos apenas que há acontecimentos milagrosos à mistura.
Este é um bom conto. Está bem escrito e bem concebido, usando com eficácia a reviravolta final e conseguindo até ser profundo de uma forma à partida insuspeita. O fundo religioso não me agrada por aí além, mas desconfio que sem ele o conto não seria tão verdadeiro como é, no sentido da realidade pessoal da autora, e também por isso, com ele ou sem ele, esta história está vários degraus acima de várias das outras histórias presentes até agora neste volume.
Contos anteriores deste livro:
Sem comentários:
Enviar um comentário
Por motivos de spam persistente, todos os comentários neste blogue são moderados. Comentários legítimos passam, mas pode demorar algum tempo. Como sempre acontece, paga a maioria por uma minoria de abusadores. Parece ser assim que o mundo funciona, infelizmente.