sábado, 24 de agosto de 2019

Possidónio Cachapa: O Homem que Existia Demais

Uma das coisas que mais me agrada na literatura é a subtileza despretensiosa, aquela forma delicada de introduzir nas ficções coisas meio ocultas mas ao mesmo tempo bem visíveis, sem que para isso seja preciso recorrer à meia bola e força, frequentemente muito tosca, dos hermetismos de linguagem.

E Possidónio Cachapa, pelos vistos, domina a arte. O Homem que Existia Demais é um sonho de liberdade, narrado sob a forma de uma analepse quase total, ensanduichada entre o momento em que o protagonista da história passa o volante do carro onde segue para as mãos de quem o acompanha (e narra a história), subindo para o tejadilho porque quer sentir o vento, e o momento em que, quilómetros à frente, o carro para e ele já não está lá, descobrindo-se o narrador sozinho. Nessa analepse é narrada a história de como e porquê o protagonista chega a um momento em que decide, do nada, passar o volante do carro em que segue para mãos alheias e desaparecer.

A sua história é a história de alguém que desde sempre procura a liberdade mais absoluta possível. Aqui, o conto tem um ponto fraco porque a ideia de que pessoas que procuram a liberdade se sentem inevitavelmente atraídas pelo circo é um cliché já demasiado gasto. Mas a história está bem contada, com uma prosa de boa qualidade, com bom ritmo e detalhes bastante bem apanhados, pelo que compensa.

E depois há a subtileza de que falo acima. Cachapa consegue só com uma palavra, ou até só com uma letra, dar ao seu conto toda uma camada adicional, porque é essa letra nessa palavra que faz com que o narrador seja um homem e não uma mulher. É que os dois, narrador e narrado, são amantes, logo homossexuais, embora fique a forte suspeita de que a liberdade que o outro procura não para na fronteira da sexualidade e ele dificilmente se deixaria restringir também a esse rótulo. Aparecer esta nova camada assim pode ter sido apenas casual, claro, mas duvido muito. Parece-me bastante mais provável que seja coisa propositada e, se o for, está mesmo muito bem feita.

Este é um bom conto. Não creio que seja muito bom e não é daqueles contos cujo tema ou abordagem me interessam o suficiente para me levar a gostar muito deles apesar das falhas que possam apresentar, mas é bom. Está claramente acima da média desta coleção.

1 comentário:

  1. Li este conto há um mês atrás e nem sei bem se gostei ou não... pelo menos não ficou na memória (se não tivesse lido esta opinião não me lembraria do assunto)

    ResponderEliminar

Por motivos de spam persistente, todos os comentários neste blogue são moderados. Comentários legítimos passam, mas pode demorar algum tempo. Como sempre acontece, paga a maioria por uma minoria de idiotas. Parece ser assim que o mundo funciona, infelizmente.