Uma das coisas que mais me agrada na literatura é a subtileza despretensiosa, aquela forma delicada de introduzir nas ficções coisas meio ocultas mas ao mesmo tempo bem visíveis, sem que para isso seja preciso recorrer à meia bola e força, frequentemente muito tosca, dos hermetismos de linguagem.
E Possidónio Cachapa, pelos vistos, domina a arte. O Homem que Existia Demais é um sonho de liberdade, narrado sob a forma de uma analepse quase total, ensanduichada entre o momento em que o protagonista da história passa o volante do carro onde segue para as mãos de quem o acompanha (e narra a história), subindo para o tejadilho porque quer sentir o vento, e o momento em que, quilómetros à frente, o carro para e ele já não está lá, descobrindo-se o narrador sozinho. Nessa analepse é narrada a história de como e porquê o protagonista chega a um momento em que decide, do nada, passar o volante do carro em que segue para mãos alheias e desaparecer.
A sua história é a história de alguém que desde sempre procura a liberdade mais absoluta possível. Aqui, o conto tem um ponto fraco porque a ideia de que pessoas que procuram a liberdade se sentem inevitavelmente atraídas pelo circo é um cliché já demasiado gasto. Mas a história está bem contada, com uma prosa de boa qualidade, com bom ritmo e detalhes bastante bem apanhados, pelo que compensa.
E depois há a subtileza de que falo acima. Cachapa consegue só com uma palavra, ou até só com uma letra, dar ao seu conto toda uma camada adicional, porque é essa letra nessa palavra que faz com que o narrador seja um homem e não uma mulher. É que os dois, narrador e narrado, são amantes, logo homossexuais, embora fique a forte suspeita de que a liberdade que o outro procura não para na fronteira da sexualidade e ele dificilmente se deixaria restringir também a esse rótulo. Aparecer esta nova camada assim pode ter sido apenas casual, claro, mas duvido muito. Parece-me bastante mais provável que seja coisa propositada e, se o for, está mesmo muito bem feita.
Este é um bom conto. Não creio que seja muito bom e não é daqueles contos cujo tema ou abordagem me interessam o suficiente para me levar a gostar muito deles apesar das falhas que possam apresentar, mas é bom. Está claramente acima da média desta coleção.
Li este conto há um mês atrás e nem sei bem se gostei ou não... pelo menos não ficou na memória (se não tivesse lido esta opinião não me lembraria do assunto)
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