segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Steve Alten: Meg

Sabem aqueles livros que parecem ser escritos de propósito para serem adaptados ao cinema? Há autores que são verdadeiros especialistas da técnica e, na FC, o nome que me vem mais rapidamente à mente é o de Michael Crichton. Pois bem, ajuizando pelo exemplo deste Meg, Steve Alten é outro.

Parece claro que a inspiração principal veio do filme de Spielberg, Tubarão. Alten pode ter pensado "será possível criar uma história com um tubarão assassino ainda maior e mais assustador do que o do Spielberg?" Provavelmente terá deparado com descrições de ciência popular sobre o primo extinto do grande tubarão branco, o megalodon, e achado que, com os seus 10 m de comprimento médio, com as fêmeas a atingir, provavelmente, uns colossais 17 m de comprimento máximo, esse peixe era o candidato ideal para tal história.

Restava um problema: o megalodon é uma espécie extinta, e para criar um thriller de ficção científica centrado no peixe assustador era preciso que o peixe assustador estivesse vivo. Bem, o celacanto também era uma espécie extinta até ser descoberto pela ciência, vivinho da silva, nas profundezas do oceano. Portanto, lá foi o bom do Alten às profundezas do oceano buscar o seu peixe assustador. Não a umas profundezas quaisquer: às mais profundas (e inacessíveis) das profundezas, a Fossa das Marianas.

Para isso, toma algumas liberdades que um leitor vulgar talvez não apanhe, mas a que alguém que conheça um pouco mais que a média sobre tubarões e oceanos (como um certo tipo que, apesar de não exercer há décadas, sempre tem um curso de biologia marinha: eu) torce o nariz. Esquece, por exemplo, que nas grandes profundidades o principal fator limitativo na fisiologia dos animais não é a falta de luz ou o frio, mas a falta de oxigénio, e que por isso os tubarões das grandes profundidades tendem a ser animais lentos e pachorrentos e pouco ou nada assustadores, apesar de poderem atingir dimensões razoáveis graças à chuva de alimentos que lhes cai do céu aquático, em especial a ocasional carcaça de baleia, capaz de alimentar um cardume inteiro deles durante bastante tempo.

E esquece que para manter o sangue quente, isto é, para conservar uma temperatura interna superior à das águas circundantes, como alguns tubarões fazem, incluindo os da família do grande tubarão branco, não basta o tamanho avantajado, ainda que este ajude: é preciso ter um metabolismo rápido, o que implica gastar oxigénio... que em grandes profundidades não existe.

Mas adiante. Thrillers de ficção científica, especialmente aqueles escritos com o contrato cinematográfico debaixo de olho, nunca foram equivalentes a FC cientificamente credível. Nem a boa FC, mesmo que esta às vezes aconteça sem ser cientificamente credível. Nem a boa literatura. E este Meg certamente não é nenhuma dessas três coisas. Porquê?

Bem, quanto à credibilidade científica estamos conversados. E, sem haver credibilidade científica, para que uma determinada obra ainda possa ser considerada boa FC não pode focar-se na parte tecnológica das coisas. Tem de ser mais filosófica, por exemplo, servindo-se de truques narrativos de FC para refletir sobre grandes questões como a natureza da humanidade, os limites da ética, as limitações da realidade, por aí fora. Ora, Alten está muito longe de ter alguma dessas questões no radar; quer apenas criar uma história emocionante e nada mais, e tenta credibilizar cientificamente essa história. Falha. E o falhanço implica que a história falha também enquanto FC.

E quanto à literatura? Bem, temos personagens rasas, com vilões de cartão e um protagonista torturado-mas-boa-gente e ainda por cima com razão, a fazer lembrar dezenas de personagens do cinema, temos o interesse romântico óbvio quase desde a primeira linha, com tragédias sucessivas a uni-los, temos uma escrita cuja melhor qualidade é ter bom ritmo e que poucas mais tem, e temos um enredo quase totalmente previsível, à parte um detalhe mesmo quase a terminar, que na verdade só é inesperado porque o leitor enquanto vai lendo tende a esquecer-se de que o nome do protagonista é Jonas; se se lembrasse, também isso seria totalmente óbvio.

Em suma, este é um livro bastante fraco, um livro-chiclete, que se masca, entretém durante umas horas e se deita fora sem deixar nada de relevante para trás.

Este livro foi comprado.

2 comentários:

  1. Yep, este é mesmo a pensar no filme. Vai ser apresentado algures entre o Tubarão e o Parque Jurássico. Vai ser um êxito (sem ironia). Cá espero para ver o filme.

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    1. Já há filme.

      E deu 400 milhões de lucro...

      https://en.wikipedia.org/wiki/The_Meg

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