sexta-feira, 5 de junho de 2020

Charles Nodier: Smarra ou Os Demónios da Noite

"De resto, às vezes há surpresas, e às vezes até são agradáveis", escrevi eu quando opinei sobre o primeiro conto deste livro de Charles Nodier. E aqui está a surpresa agradável, logo na história seguinte, uma noveleta, quase novela, muito onírica, muito poética, camada Smarra ou Os Demónios da Noite (bibliografia).

O curioso é que o romantismo está lá todo, esse mesmo romantismo que tanto desagrado costuma causar-me. Também lá está, e em grande força, algo que só raramente me agrada: o onirismo, a construção de ficções baseadas em sonhos ou, o que é mais comum, pesadelos. Idem para a prosa poética, cujas tentativas tantos desastres literários têm causado e continuam a causar. E também o estilo declamativo dos diálogos, teatral, nos quais as pessoas intervêm à vez, com longos e rebuscados discursos que em nada se parecem com a fala humana. Só características que deviam levar-me a detestar esta história. E no entanto, gostei bastante dela. Porquê?

Porque Nodier consegue navegar por todos esses escolhos permanentemente na vertigem do ridículo mas sem nunca lá cair. Não é para qualquer um. E também não é para qualquer um escrever como quem pinta um quadro do Hieronymus Bosch, numa explosão de bizarrias estranhamente apelativas, num grotesco que, independentemente de história, estilo ou tudo o resto, é interessante em si mesmo.

Este é um dos raros casos em que até o enredo propriamente dito é secundário. De resto, é o próprio Nodier a secundarizá-lo, ainda que o onirismo de todo o texto torne compreensível que o faça. Os sonhos não são propriamente pródigos em enredo, cheios que estão de cortes de causalidade, pontas soltas e absurdos. O que neles mais relevo tem são as imagens, as cenas, algumas coisas que são ditas ou feitas independentemente de fazerem sentido ou não. E é muito isso o que aqui mais fascina: as imagens luxuriantes, o voo da imaginação, em parte a forma como está descrito.

Esta noveleta é a prova de que quando as coisas estão mesmo bem feitas até o que normalmente não agrada pode agradar. Posso não ter ficado rendido a esta leitura, que não fiquei, que apesar do que ficou dito acima não deixei de encontrar aqui alguns motivos de desagrado, mas reconheço nela um magnífico exemplo do melhor que a época e o estilo têm para apresentar.

Conto anterior deste livro:

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