Em 1815, o Monte Tambora, na Indonésia, entrou violentamente em erupção. A violência foi tal que o clima do planeta sofreu alterações profundas e esse ano ficou conhecido na Europa como o ano sem verão. Por coincidência, 1815 foi também o ano em que um grupo de jovens aristocratas ingleses resolveu passar o verão em conjunto nas margens do lago Leman, na Suíça. Entre estes contava-se Mary Wollstonecraft Godwin, então ainda solteira, o poeta Percy Shelley, que viria a casar com ela mudando-lhe o nome para Mary Shelley, o escritor John Polidori e o poeta George Gordon Byron, mais conhecido como Lord Byron.
Segundo reza a história, o péssimo tempo daquele verão que não o foi levou o grupo a manter-se dentro de casa e terá sido o Lord Byron a propor que, para passarem o tempo cada um escrevesse uma história de fantasmas. Nenhuma história de fantasmas acabou por ser produzida, mas isso não quer dizer que a ideia fosse infrutífera. Pelo contrário. Mary Shelley escreveu o início do que viria a ser a sua obra-prima, o romance Frankenstein. E Byron escreveu um fragmento de uma história de vampiros que viria mais tarde a ser usado por Polidori para escrever o conto que daria origem a todo o subgénero dos vampiros.
E que tem isto a ver com John Crowley?
Bastante. É que Crowley parte do seguinte "e se?": E se Byron tivesse de facto escrito um romance inteiro? Talvez durante esse período, talvez só começado durante esse período, como aconteceu com o de Shelley, talvez mais tarde. Mas e se o romance tivesse mesmo existido? E se tivesse estado perdido durante praticamente dois séculos, sendo redescoberto recentemente? Ora é esse, precisamente, O Manuscrito Perdido de Lord Byron.
Mas este livro não se limita a mimetizar o romance (incompleto?) de Byron. Isso, criar um pastiche credível de algo escrito em prosa por alguém que ficou conhecido basicamente como poeta, já teria sido um feito relevante. Mas Crowley vai além do pastiche, contando concomitantemente outras duas histórias: a história da relação problemática entre Byron e a sua filha, a não menos famosa Ada Lovelace, e a história da descoberta e decifração do romance de Byron.
(Consta que o pastiche não é muito credível, que o estilo de Byron não está particularmente bem imitado. Eu deixei-me levar por ele; pode não ser exatamente o que Byron teria escrito e como o teria escrito, mas é totalmente oitocentista.)
E fá-lo interligando profundamente as três histórias. O romance de Byron é parcialmente autobiográfico (ou, melhor dizendo, biográfico), contando uma história de paternidade ausente e amores volúveis. O progatonista é Ali, filho ilegítimo de um tal Lord Sane e de uma mulher albanesa, criado na sua Albânia natal até que o pai — um aventureiro e criminoso falido, frequentador de todos os submundos — o vem buscar, no final da infância. Porquê? Por não ter herdeiros legítimos e ver nele a única possibilidade do título e as propriedades ficarem na família.
Ali desenvolve-se então na Grã-Bretanha, fazendo o pai questão de que tenha uma educação e vida de nobre inglês, independentemente da sua condição financeira e social. Isso inclui, claro, uma passagem por escolas de prestígio, e esta passagem inclui, evidentemente, a boémia típica do meio. Acontece o despertar da sexualidade, sugestões de bissexualidade (e sim, Byron foi bissexual), por aí fora, até tudo ser interrompido pelo assassinato do pai de Ali, em circunstâncias misteriosas. Preso, acusado de um crime que não cometeu, Ali vê-se surpreendentemente libertado da cadeia por um zombie negro, o que constitui a principal aparição do fantástico neste livro (em todo ele, pois fora do manuscrito de Byron não há qualquer fantástico), e depois levado no barco de uns contrabandistas irlandeses para fora da Grã-Bretanha. Anos mais tarde regressa, após ter contribuído para uma importante vitória britânica na Guerra Peninsular, em solo espanhol, é julgado e absolvido, e acaba por casar e gerar uma filha, só para partir mais uma vez para o estrangeiro, abandonando a mulher e a filha, terminando o romance mais ou menos em aberto. Há quem critique o facto de este não estar particularmente bem estruturado. E não está. Mas o pressuposto é que se trata de uma primeira versão, escrita ao correr da pena, não destinada a publicação. Dificilmente seria um romance perfeito.
E de resto, o romance é um meio para um fim. Tudo nele é usado para contar a história de Byron e da sua relação com a família, por intermédio de notas que a filha, Ada Lovelace, acrescenta ao manuscrito. Eu geralmente não gosto nada de notas de rodapé — ou, como neste caso, de fim de capítulo — porque as acho intrusivas e de uma forma geral inúteis pois ora nada trazem de realmente relevante, ora o que trazem pode com vantagem ser incluído no texto principal. Mas neste caso as notas são usadas para pôr uma segunda história por cima da primeira e usar esta como fio condutor para contar a segunda. E Crowley fá-lo magnificamente bem, numa execução literária brilhante.
Depois, há a terceira história, contada de forma epistolar (sendo as epístolas mensagens de email) em capítulos que de vez em quando interrompem o romance de Byron. Aqui relata-se a história da descoberta do romance e da sua decifração, pois Ada, influenciada pelo amigo Charles Babbage, teria cifrado o romance para o salvar da destruição, numa longa tabela numérica que um pequeno grupo de pessoas recebe das mãos de uma personagem misteriosa e vai depois tentar (e conseguir) decifrar.
A protagonista deste grupo é uma americana chamada Alexandra "Smith" Novak, que vai a Inglaterra para ajudar a elaborar um site dedicado a Ada Lovelace. É ela quem recebe os papéis de Ada e, entre estes, as folhas cifradas contendo o manuscrito de Byron. Com a ajuda da namorada, académica e matemática, e do pai, um antigo estudioso de Byron, a viver no estrangeiro para escapar aos tribunais, consegue trazer à luz o romance perdido e ao mesmo tempo reata o contacto com o pai distante.
E este, o pai distante, é outro tema comum do romance. Todos os pais aqui são homens distantes, defeituosos, talvez mesmo criminosos, a braços com a justiça. Crowley percorre caminhos arriscados, aflorando temas quentes como o abuso sexual ou a pedofilia, e correndo o risco de despertar acusações de não ser suficientemente condenatório. O livro é por vezes imcómodo, em parte por isso, mas quem disse que a literatura tem de ser cómoda?
Este livro surpreendeu-me. Surpreendeu-me por me ter levado a gostar tanto, estando tão distante do tipo de literatura que mais costuma agradar-me. Surpreendeu-me por nunca me ter aborrecido. Surpreendeu-me por me ter mostrado as suas falhas e mesmo assim ter mantido o encanto intacto. Gostei muito dele, mesmo. Surpreendentemente.
Este livro foi comprado.
Achei seu texto muito bom! Escrevi hoje, em meu blog, uma resenha de Frankenstein ou o Prometeu moderno, da Mary Shelley e lembrei deles indo e de onde/como surgiram essas histórias de terror, sendo a iniciada alguns tempo depois por Mary, responsável por mudanças significativas na literatura inglesa.
ResponderEliminarQuanto à utilização de notas de rodapé (ou fim do livro) sobre o texto, tenho que discordar e dizer que eu adoro. Acho-as importantíssimas para a contextualização de tempo e espaço e, sobretudo, nos clássicos, para auxílio de informações que, na maioria das vezes, o leitor teria que pesquisar separadamente.
Vou adicionar o livro na minha lista infinita de leituras e vou da-lo a atenção devida em consequência da sua opinião sobre.
Abraços!
Victor Wallace
https://wallsbooks.blogspot.com/
Obrigado.
EliminarEm relação às notas de rodapé, eu prefiro, de longe, quando não presume que se sabe o que o leitor sabe ou ignora, porque muitas vezes erra. É uma antipatia gerada por anos a ler livros de ficção científica cheios de notas de rodapé sobre coisas básicas da física ou da biologia, que eu sabia perfeitamente e que ainda por cima tantas vezes estavam erradas. Ou aquelas muitíssimo inúteis notas de rodapé de "em francês no original", como se o leitor fosse estúpido ao ponto de quando apanha com uma frase em francês no correr do texto não percebe que ela já assim vem do original.
Há notas úteis, e eu por vezes uso-as. Mas só uso as que me parecem estritamente indispensáveis. Informação de contexto cultural que não seja propriamente fácil de encontrar, por exemplo.