quarta-feira, 10 de junho de 2020

Carlos Lopes (org.): Talentos Fantásticos (#leiturtugas)

Da mesma forma que a mais básica qualidade de quem quer aparafusar um objeto ou uma peça a outra é saber que instrumento usar para esse fim, digamos uma chave de fendas, em que ponta pegar, como introduzir a outra ponta na ranhura do parafuso e como e durante quanto tempo tem de girar chave e parafuso até este ficar devidamente atarrachado, assim a mais básica qualidade de quem quer escrever é saber minimamente como e de que forma terá de organizar palavras e sinais de pontuação em frases e parágrafos que façam sentido e contribuam para o todo. Sem isso, nem a melhor ideia se salva. Sem isso, nada feito.

E de igual forma, a mais básica qualidade de quem quer organizar antologias é saber como proteger leitores e autores do desagrado e do embaraço de apresentar ao público coisas mal amanhadas, toscas, coxas, demasiado amadoras.

E é precisamente por isso que esta Talentos Fantásticos (bibliografia) é uma péssima antologia, claramente a pior antologia portuguesa de FC&F que eu li até hoje. Não sabendo como se desenrolou o trabalho, não sei se a culpa é de Carlos Lopes, mas é ele que dá a cara pelo projeto, pelo que a responsabilidade última é sua.

Note-se que a antologia ser péssima não é apenas consequência da qualidade dos textos que a compõem. Na verdade, esta antologia é significativamente pior que a soma dos textos que contém, porque a sua elaboração revela um descaso, uma falta de cuidado, uma incompetência que nenhum dos contos e poemas bons ou meramente interessantes que aqui se encontram mereceria. O mínimo dos mínimos que se exigiria era mais critério na seleção, para deixar de fora os dois punhados de textos péssimos que aqui aparecem, e algo que se assemelhasse a uma revisão, que expurgasse o livro de erros toscos de português, ortográficos, de pontuação. Mas não houve nem critério nem revisão.

Se tivesse havido revisão, e especialmente se ela fosse cuidada e incidisse não só sobre a ortografia e a pontuação mas também sobre a fraca construção de algumas frases, uma quantidade razoável dos contos (sobretudo) melhorariam significativamente. Como digo acima, isso protegeria leitores, da leitura de coisas mal feitas, e autores, poupando-os a certos embaraços. E é algo que qualquer edição com algum profissionalismo inclui. Todos os autores cometem erros; também cabe ao editor encontrar esses erros antes de virem impressos em letra de imprensa.

Quanto ao critério, a conversa é mais complicada. Há quem ache que qualquer oportunidade para publicar qualquer coisa é inerentemente bem-vinda e que a rejeição corta as pernas a autores com potencial, os quais acabam por não desenvolver esse potencial porque foram rejeitados. Bem, julgo que basta olhar para esta antologia e para os piores textos que contém para perceber até que ponto esta ideia falha no confronto com a realidade, pois não tenho notícia de nenhum dos respetivos autores ter continuado a desenvolver-se nos anos que decorreram desde esta publicação. Entre os dos melhores textos ou daqueles que são razoavelmente fracos há vários, mas entre os que são mesmo maus? Nem um.

Mas a conversa sobre o critério é multifacetada e a questão dos contos maus é só parte dela. Há também a questão das boas ideias, ou pelo menos das ideias com potencial, que, porque a antologia parece só ter aceitado contos até umas três mil palavras, foram encafuadas à pressão em textos desse tamanho, caso contrário ficariam de fora. Esta não foi a primeira vez que isto aconteceu, longe disso, e de certeza que não será a última. Demasiadas oportunidades de publicação, entre nós, têm limites para a dimensão dos contos que são demasiado restritivos, e demasiados autores, ou candidatos a tal, estão tão desabituados de ler contos que não sabem bem que ideias dão um conto curto, que ideias precisam de mais espaço e que ideias são mais adequadas a romances. Que ideias e que forma de as desenvolver.

Pode argumentar-se que esses limites são um bom exercício para controlar uma certa tentação para a prolixidade que existe na literatura, e muito em especial na de fantasia, onde o padrão é a trilogia de calhamaços. Certo. Mas nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Há histórias que não cabem no conto curto, não são nada poucas, e um quinhão significativo destas histórias que aqui se encontram é precisamente assim. Até autores onde é visível o talento, quer este já comece a estar desenvolvido, quer ainda esteja apenas em potencial, caíram aqui na armadilha de espremer para dentro de um espartilho apertado histórias que suplicavam por um desenvolvimento maior.

Mais complicado é decidir se um antologista deve recusar este tipo de histórias quando estas lhe são apresentadas. Em tese, eu diria que sim. Não com uma recusa silenciosa, talvez, mas com uma recusa explicada, dizendo precisamente que a história tem potencial mas precisa de mais espaço para respirar. Mas isto é em tese. Na prática não há entre nós assim tantas oportunidades de publicação e por isso é compreensível não só que os autores se esfalfem para encaixar as suas ideias nos limites exigidos, bem ou mal, como também que os editores as aceitem mesmo quando não vêm com o tamanho que melhor serve a história.

O problema é que, embora isto seja compreensível, o que sofre é o resultado final. Incentivando os autores a desenvolver bem as suas ideias, uma antologia medíocre pode elevar-se até uma qualidade superior, mas se não faz nada por isso nunca deixará de ser medíocre. E isso tem consequências, quer para a fruição da leitura dos incautos que nela pegarem, quer para a evolução (ou não) dos autores que nela participarem.

E se é assim para uma antologia medíocre, mais assim é para uma antologia francamente má como esta, pois acrescenta a este problema os mencionados acima.

Sim, existem aqui textos mais que razoáveis, e até alguns bons. Sim, existem textos bem escritos. E sim, existem contos cujo tamanho se adequa bem à história que contam. Mas são tão poucos aqueles que reúnem estas três qualidades no meio de uma enorme lista de textos problemáticos, ou de textos francamente maus, que não conseguem fazer com que esta antologia valha a pena. Daqui, nada ficou para a história do fantástico português. Se algum dos autores cujas ideias têm mais potencial chegar a desenvolvê-la, talvez venha a ficar, mas se isso acontecer não será o que está publicado aqui a ser relevante, mas o que for publicado onde quer que acabe por sair.

E isto é o que penso da antologia como um todo. Se querem o que achei de cada um dos textos do livro, sigam estes links:
Este livro foi comprado.

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