sábado, 20 de junho de 2020

O facebook e a censura

«Ze ultra-right groupz muscht have freedom auf expressiohn, aba boobz und sarcazm are schtricktly verbotten!»
Há longos anos, desde muito antes do escândalo da Cambridge Analytica, empresa que se dedicava a recolher e tratar dados de utilizadores do Facebook para alimentar a máquina de propaganda da extrema-direita internacional, e continuando depois praticamente sem quaisquer freios, que o Facebook e as suas subsidiárias, especialmente o Whatsapp mas também o Instagram, funciona alegremente e sem freios como veículo para a disseminação da propaganda de extrema-direita, com influência direta em resultados eleitorais um pouco por todo o mundo, com a eleição do Trump e do Bolsonaro à cabeça.

Todos os dias, todas as horas, arriscar-me-ia mesmo a dizer todos os minutos, o lixo xenófobo e racista, as notícias falsas mais ou menos caluniosas, os memes mentirosos, são publicados e distribuídos sem qualquer travão. Páginas universalmente reconhecidas como propagadoras desse tipo de lixo mantêm a sua atividade há anos sem percalços. Denúncias caem sistematicamente em saco roto; o facebook não vê nelas nada de errado. Quem as procurar facilmente as encontra; há listas delas, feitas por jornalistas que investigaram esse género de propaganda fascista e as suas ligações e financiamentos. Está tudo no facebook, tão à vontade como se estivesse numa esplanada dos tempos pré-covid.

E não estou aqui a falar dos idiotas úteis que repetem estas coisas, sempre indignadíssimos e a espumar pela boca. Estou a falar de operações de propaganda de extrema-direita friamente calculadas, devidamente financiadas, a operar livremente no facebook enquanto este olha para o outro lado.

Mas para que lado, ao certo? E porquê?

Quanto ao lado, posso contar uma historinha que se passou comigo. Foi-se desenvolvendo durante anos mas teve um primeiro desenlace há umas semanas.

Começou com esta imagem:


Esta fotografia é um documento histórico. Parte de uma série de três (julgo eu), representa Mário Soares, então Presidente da República Portuguesa, a sua mulher, Maria Barroso, e uma banhista em topless que o casal encontrou na praia e com quem trocou umas palavras. Foi tirada pelo fotógrafo que acompanhava o presidente, portanto com pleno conhecimento e consentimento de todos os envolvidos, veio publicada na imprensa e é um documento histórico porque é das imagens mais eficazes que conheço a retratar um estilo descontraído de presidência e uma época. O conteúdo sexual é rigorosamente igual a zero. E apesar de tudo isto...

... o facebook baniu-a.

Porque, que horror, tem mamas!

Sim, que no reino do facebook o discurso de ódio tem rédea livre mas ai de quem publique alguma foto com (glup!) mamas! E assim se apaga a história. E assim se apaga a cultura de povos inteiros que não têm os provincianos pudores puritanos dos americanos, numa atitude não só desrespeitosa, não só profundamente sexista (os homens podem aparecer seminus à vontade, as mulheres têm de se tapar) como profundamente racista. E não estou a ser hiperbólico: um amigo meu, angolano, teve problemas com o facebook por partilhar imagens de uma cerimónia tradicional do seu povo. É schtricktly verbotten, ja. Nada de mamas, sem apelo nem agravo!

Depois, foi esta imagem:


Foi tirada por mim, no Festival Bang, porque me divertiu encontrar aquele orc a caminho da casa de banho. E é óbvio para qualquer pessoa que pelo menos tenha visto alguma propaganda dos filmes do Senhor dos Anéis ou do Hobbit que se trata de um orc.

Tendo achado piada à ideia (foi coisa da organização do Festival Bang, certamente), resolvi pô-la nas redes sociais com uma legenda que lhe acrescentava um bocadinho mais de ironia, fazendo referência a uma canção do Miguel Araújo que na altura passava por tudo quanto era rádio, «Os Maridos das Outras»
Eh pá, tá certo que toda a gente sabe que os homens são uns animais, mas isto é um exagero!
O facebook não gostou. Baniu-me a foto com o argumento de que violava as regras referentes ao discurso de ódio.

E eu fiquei absolutamente boquiaberto. Que raio tem uma foto de uma piada com um orc e uma casa de banho a ver com discurso de ódio?! Ou uma outra piada relativa a uma canção?! Especialmente quando o mais puro ódio xenófobo, racista e sexista é destilado todos os dias nas páginas do facebook, com a mais absoluta complacência de quem as gere?

Depois de meses a lembrar-me de vez em quando desta coisa sem sentido e a pensar no que poderia tê-la causado, cheguei a uma tentativa de explicação, mas o grau de racismo por parte do facebook necessário para que seja verdadeira é tão gigantesco que não quero crer na sua veracidade. A única explicação que me ocorreu foi algum racista empedernido, lá nas catacumbas do facebook, ter achado que o orc era um negro. O que seria... sei lá. Imbecil? Nojento? Asqueroso?

Fiquemo-nos por inqualificável.

A última foi esta:


Trata-se de uma publicação da Manuela d'Ávila, ex-candidata a vice-presidente do Brasil, na qual ela chama ironicamente a atenção para o caráter arianíssimo das criancinhas que o governo neonazi do Bolsonaro escolheu para um cartaz de exaltação do orgulho patriótico. Se num país europeu isto já seria racista, num país como o Brasil, feito de miscigenações múltiplas, tanto voluntárias como forçadas, rebenta a escala do racismo.

Cometi a imprudência de usar de sarcasmo, chamando nazi ao que é nazi com uma citação do hino nazi. Suponho que seja por isso que o facebook voltou a banir a foto, de novo sob o argumento de que era discurso de ódio. Na verdade é precisamente o inverso de discurso de ódio, mas para o compreender é forçoso que exista um cérebro funcional, e isso talvez seja pedir demasiado lá por aquelas bandas.

De modo que o facebook me baniu durante 24 horas e me impôs mais umas quantas limitações, supostamente porque eu atingi as 5 violações aos termos e condições. Contaram-nas? São três, não são? Pois, também me parece que são três. Mas eles teimam que são cinco, e pode-se contestar à vontade que de nada serve. Ou há algum bug no programa, o que não é de excluir, ou então estamos no reino da mais absoluta arbitrariedade, um reino surrealista em que se chama discurso de ódio ao que é o oposto e em que cinco é três e três é cinco. Como no 1984 do Orwell, guerra é paz.

E entretanto, os verdadeiros grupos de ódio continuam a destilá-lo com total impunidade. Provavelmente porque guerra é paz. O verdadeiro racismo continua a ser destilado completamente à vontade, com raríssimas e muito publicitadas exceções, para se mostrar que se faz alguma coisa. Só para testar as águas, enquanto escrevia este texto resolvi denunciar uma publicação clarissimamente racista. Um indivíduo, num grupo que não é de fascistas e racistas, mas onde fascistas e racistas costumam sentir-se à vontade, achou por bem divulgar um vídeo de um negro a partir coisas, sabe-se lá feito onde e quando, com o ternurento comentário de "a culpa é dos brancos porque os foram tirar da selva". Denunciei este asco, e o facebook foi lesto a dizer-me que não via aqui mal algum. E como este existem aos milhares.

Mas mamas? Piadas? Sarcasmo antifascista? É proibido. Porque guerra é paz.

Ou se calhar porque o negócio do facebook, uma empresa que não paga impostos, com lucros milionários ganhos com base na venda de dados dos utilizadores, depende da promoção do fascismo na rede porque são os fascistas que lhe compram os dados. Isso foi óbvio no caso da Cambridge Analytica, talvez demasiado óbvio, mas só alguém muito ingénuo pensará que esse caso serviu de emenda para alguma coisa. Terá, quando muito, avisado os tubarões para serem menos óbvios, mas mais do que isso? Nem pouco mais ou menos.

O facebook devia ser destruído. Pura e simplesmente. No seu lugar devia criar-se uma rede de redes sem monopólios, intermodal e interligada, cuja infraestrutura fosse gerida por alguma associação sem fins lucrativos, constituída mais ou menos nos moldes do W3C. Uma rede a que uma série de pequenas e médias redes sociais pudessem ligar-se, permitindo a cada utilizador escolher a que prefere sem por isso perder o acesso aos seus amigos que prefiram outras.

Há empresas que são too large to fail, segundo parece. O facebook é too large to exist.

E demasiado facho, também.

2 comentários:

  1. Fogo estou parva, não por desconhecer estas ocorrências por parte do face mas o que lá colocaste não tinha lado de mal. Santa ditadura que está de volta.
    Boas leituras.

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