sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Outro dos "meus"

Depois da pausa aqui na Lâmpada causada pela queda da minha mãe, tenho passado os últimos meses a recuperar o tempo perdido primeiro no que toca às leiturtugas, depois às leituras que fui fazendo entretanto e não tive oportunidade de comentar atempadamente. As leiturtugas já estão em dia há mais de um mês; as leituras estão quase, pois já só um livro mantém um atraso considerável. Está na altura, portanto, de regressar a outros tipos de conteúdo do blogue. Por exemplo, às minhas traduções que foram sendo publicadas entretanto.

A bibliotecária de Auschwitz está na moda. Na verdade está tão na moda que gerou toda uma panóplia de personagens de Auschwitz, incluindo até aquele livreco que deu oportunidade ao José Rodrigues dos Santos para sugerir que os fornos crematórios tinham sido criados pelos nazis por caridade, pois os coitadinhos dos judeus sofriam muito no gueto de Varsóvia.

Tudo isto tem muito de edição oportunista, evidentemente, tentando aproveitar um sucesso de vendas através da edição de uma série de livros que, pelo menos na aparência, seguem a mesma fórmula geral. É o mercado livreiro que temos: incapaz de arriscar em coisas diferentes, ansioso por seguir qualquer fórmula que pelo menos dê algumas garantias, por mais fantasmagóricas que elas sejam, de retorno financeiro. É o mercado livreiro que temos e, muito provável e infelizmente, é o reflexo do público leitor que temos, avesso a arriscar o desconhecido. Se assim não fosse, estas modas rapidamente morreriam de morte natural.

No entanto, este livro é um pouco diferente dos restantes. Para começar, Dita Kraus é a própria "bibliotecária de Auschwitz". E para terminar, este Uma Vida Adiada é a história dela, da vida dela, contada na primeira pessoa.

E parece ter sido mesmo na primeira pessoa. Não parece ter havido aqui qualquer espécie de ghost-writer a dourar a prosa ou a estruturar melhor o volume (embora os episódios que Dita Kraus conta não tenham sido organizados por ela), até porque este é mais estruturado no início e no meio do que mais para o fim, onde como que se dissolve numa série de episódios mais ou menos desconexos. Começa por ser a história de uma rapariguinha checa banalíssima, nascida no seio da burguesia judaica, mas laica, do país. Uma rapariguinha que não se distingue em nada, realmente. Não parece ser particularmente inteligente, ou talentosa, não parece passar de uma miudinha preocupada sobretudo com as coisas da infância e do início da adolescência, até um bom bocado pateta.

E de repente cai-lhe a História em cima.

Mas não. A frase acima é mentirosa. A História não lhe cai de repente em cima; vai caindo aos poucos, insidiosa, porque é aos poucos, insidiosamente, que o fascismo se instala, que os monstros deixam de estar camuflados no seio de todos nós e se dão a conhecer, que a vida se vai tornando cada vez mais insuportável até, tantas vezes, deixar de existir. É essa a grande força e a grande relevância deste livro, agora que estamos de novo num mundo em que os monstros vão saindo das suas tocas, ansiosos por dar rédea solta à sua ânsia por um novo Holocausto. É a história em primeira pessoa de alguém que os conheceu de perto, de alguém que lhes sobreviveu graças à juventude, a alguma manha e a muita, muita sorte, de alguém que perdeu quase toda a família, assassinada em várias fases do enorme crime nazi.

Não é livro isento de problemas. Basta dizer que Kraus acaba por casar com um sionista convicto, também ele sobrevivente dos campos de extermínio e, embora não pareça partilhar integralmente das convicções do marido, parte para Israel, onde as imagens das aldeias árabes abandonadas não parecem despertar-lhe qualquer espécie de imagem de pessoas expulsas das suas casas nalguma das várias fases da limpeza étnica que deu lugar ao estado moderno. Mas é um livro tristemente necessário. Porque sim, o crime existiu, e foi hediondo, e os seus responsáveis foram os antepassados diretos daqueles que hoje em dia ensaiam de novo a mesma espécie de retórica muitas vezes (mas nem sempre) contra outros grupos de pessoas. Na época em que Dita Kraus era criança foram os judeus; hoje são os muçulmanos, ou os árabes, ou de novo os judeus, ou os ciganos, ou, ou, ou. A retórica é a mesma, os seus objetivos são idênticos, e o resultado final será uma cópia a papel químico se deixarmos essa peçonha alastrar.

É para sabermos de que forma e porquê a peçonha alastra que livros destes são fundamentais.

Mesmo quando não dão grande gosto ao tradutor.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Por motivos de spam persistente, todos os comentários neste blogue são moderados. Comentários legítimos passam, mas pode demorar algum tempo. Como sempre acontece, paga a maioria por uma minoria de abusadores. Parece ser assim que o mundo funciona, infelizmente.