sábado, 23 de janeiro de 2021

David Soares: Rei Assobio

Na organização de antologias e coletâneas a arrumação das histórias, não sendo decisiva, tem a sua importância mesmo quando estas não têm nenhuma ligação entre si. Embora nem todos os leitores o façam, a maioria lê-as sequencialmente, da primeira até à última, o que faz com que as histórias inaugural e final acabem por se tornar mais relevantes do que as demais para a experiência global de leitura, a primeira porque ajuda a estabelecer um tom e a última porque fornece ao leitor a parcela mais duradoura da impressão geral que a leitura lhe irá deixar.

David Soares não parece ser desta opinião, ou então é a sua ideia do que é mais ou menos interessante que é oposta à minha. Certo é que a história cujo título utilizou para intitular o livro, o que costuma indicar ser essa a história que o autor (ou o editor; nem sempre os títulos são da responsabilidade dos autores) considera mais impactante, é a do meio. Para o fim deixou esta Rei Assobio (bibliografia), de longe a mais extensa das três histórias mas também a que me pareceu menos bem conseguida.

Apesar disso, é uma boa história, ou pelo menos situa-se algures entre o razoável mais e o bom menos. E é possível que eu tivesse gostado mais dela se não tivesse vindo na sequência de A Luz Miserável porque esta segunda história não só é melhor como se debruça sobre temas parcialmente semelhantes, uma vez que em ambas a vingança é um dos principais motores do enredo. N'A Luz Miserável trata-se da vingança de um feiticeiro africano contra os soldados portugueses que cometeram um massacre durante a guerra; aqui, é a vingança do Rei Assobio contra uma aldeia e, na verdade, o mundo.

O protagonista é uma daquelas personagens de que o horror tanto gosta: o jovem inadaptado, muitas vezes com uma deficiência qualquer, que sofre a crueldade do mundo até acabar por se transformar num monstro. O conto narra em parte a forma como esse jovem se transforma em monstro e os porquês de o fazer, num longo regresso ao passado que ocupa a maior parte da história. Tudo tem a ver com um defeito na fala que o faz assobiar ao falar, e com um padre e um professor que o convencem a participar numa representação teatral natalícia. Corre mal. E ele acaba por ser vítima de uma tragédia causada em parte por estranhas criaturas que assombram as redondezas

O resto do conto mostra-o, anos mais tarde (e com outro defeito na fala), a tentar convencer um grupo de jovens delinquentes a colaborar com ele numa vingança contra as criaturas, e o que acontece quando o confronto final tem lugar. O final... bem, o final não faz qualquer sentido. É certo que é sempre possível que me tenha escapado qualquer coisa, mas não é menos certo que há ali uma inversão de papéis que me pareceu absolutamente gratuita e não menos absurda. Um deus ex machina algo sui generis, mas deus ex machina na mesma, com tudo o que o artifício tem de desagradável para a experiência de leitura. É em parte por esse motivo por que esta me pareceu ser a pior das três histórias. O facto de ser a que tem mais gralhas também não ajudou.

Mas está muito longe de ser uma má noveleta.

Contos anteriores deste livro:

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