domingo, 17 de janeiro de 2021

Ricardo Dias: Diferente (#leiturtugas)

Há algumas histórias que parecem uma coisa e depois se revelam outra bem diferente lá mais para o fim, e este conto de Ricardo Dias, sobre um homem que é Diferente, nem de propósito, o que na teocracia distópica futurista em que vive é ofensa capital, é uma dessas histórias.

Este é um conto razoável, daqueles que teriam potencial para serem bons se os seus autores tivessem tratado melhor o material de base. Há aqui uma série de elementos bastante interessantes, mas Ricardo Dias é (ou era na altura em que escreveu o conto; os autores evoluem) bastante melhor a ter ideias e a conceber situações do que a passá-las a texto.

Dias não é um estilista e tem alguma dificuldade em criar diálogos credíveis, o que gera uma experiência de leitura que não é particularmente agradável, até porque prejudica a suspensão de descrença necessária para apreciar uma história destas. Não que os elabore demasiado destruindo a oralidade necessária, pecha comum em muitos autores; o problema dele é mais colocar na boca de adultos frases e expressões mais características de jovens ou crianças. Há uma certa imaturidade nos diálogos desta história e também há alguma imaturidade no desenrolar do enredo. As duas coisas, de resto, estão relacionadas: a insistência em certas ideias, a sua repetição nas falas das personagens (principalmente), torna os vários acontecimentos demasiado óbvios. OK, há uma técnica chamada foreshadowing, a antecipação de acontecimentos futuros, mas ela só funciona se usada bem, e de qualquer forma não é grande ideia empregá-la num conto tão curto.

Por outro lado, a história tem potencial. Uma teocracia fundamentalista, obcecada pela pureza, que reprime violentamente qualquer desvio à normatividade sexual, tem um potencial muito interessante para ser usada como crítica de tendências nesse sentido existentes na sociedade contemporânea, e é claramente esse o objetivo do autor. Mas o mais interessante talvez seja mesmo o facto de Dias lançar a crítica "de dentro", por assim dizer, o que se torna evidente no desenlace do conto, o momento em que um deus ex machina totalmente literal faz com que ele deixe de ser ficção científica para passar a fantasia científica. Ou seja, a sua crítica ao fundamentalismo religioso não é a de um ateu, mas a de um crente e isso dá-lhe mais força.

Palavra de ateu.

Em suma: este é um conto interessante, que não é bom mas podia ter sido.


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