De resto, isto não é exclusivo de romances-colagem. São célebres no meio ligado à FC as séries problemáticas de alguns grandes escritores do género, iniciadas com grande pujança e qualidade e concluídas de forma mais ou menos pífia, com histórias pouco consistentes ou muito desnecessárias. Asimov, com os malabarismos a que teve de recorrer para fundir os universos da Fundação e dos robôs positrónicos, ou Clarke, com as suas sequelas, cada vez piores, de 2001, estão aí para não me deixarem mentir. No entanto, quando isto acontece numa série de obras mais ou menos independentes, o estrago tende a ser menor do que quando acontece num romance-colagem, porque basta desfrutar dos livros bons e ignorar os menos bons. Em romances-colagem não temos essa opção.
Por outro lado, os romances-colagem podem ser muito diferentes entre si e é problemático estabelecer padrões que se apliquem a todos. Eles variam no grau de alteração das histórias para se conformarem ao formato romance, por exemplo, indo daqueles que alteram muito pouco os contos de base, limitando-se fundamentalmente a acrescentar mais material, quando sequer chegam a tanto, até aos verdadeiros fix-ups, em que as histórias de base praticamente desaparecem, engolidas pela nova narrativa que se lhes sobrepõe. As Aventuras do Vampiro de Palmares, descai claramente para o lado da reduzida alteração, acrescentando-se novas histórias às anteriormente existentes, e mantendo-se estas em grande medida inalteradas. É uma estratégia arriscada e creio que, ao contrário do que acontece noutro livro seu em que seguiu a mesma estratégia (Xochiquetzal, de que falei há relativamente pouco tempo aqui), Gerson Lodi-Ribeiro não é aqui lá muito bem sucedido.
O problema principal, parece-me, é a falta de um verdadeiro fio condutor que sirva de arco narrativo para todo o livro. Começando este no nascimento do protagonista (na verdade começa antes, nos acontecimentos que vão levar ao seu exílio), um arco narrativo lógico terminaria na sua morte, ou então em algum acontecimento relevante o suficiente para levar a uma mudança de rumo fundamental na sua vida. Mas não é nada disso o que aqui temos, pelo contrário; o romance termina com uma história relativamente menor (em termos de percurso de vida do protagonista, não de qualidade), na qual ainda por cima é introduzida uma personagem com um potencial de desenvolvimento que não é concretizado.
Também a história inaugural (deixando de parte o prólogo; com ele incluído será a segunda) não contribui para a obtenção de um todo coeso. Muito mais descritiva do que a maior parte das restantes, esta história tem material suficiente para um romance autónomo, o qual poderia ser muitíssimo interessante se a narração descritiva e distanciada fosse intercalada com momentos de ação em proximidade, diálogo e conflito, à semelhança do que acontece com as melhores histórias do conjunto. Talvez se devesse ter começado por aí a publicação destas histórias, escrevendo e publicando primeiro esse romance e seguindo depois para as restantes, embora seja forçoso reconhecer que também essa opção acarretaria riscos: se esse livro não fosse bem sucedido, a publicação das restantes histórias poderia ficar comprometida.
De resto, pode perfeitamente dar-se o caso de ter sido muito isso o que aconteceu. É que a cronologia do Vampiro de Palmares não termina em finais do século XIX, como surge neste livro, e há mais material já publicado, ambientado nos séculos XX e XXI, e inclusivamente no futuro. É possível que a ideia tivesse sido (ou ainda seja) complementar este livro com outra obra semelhante ambientada em tempos mais recentes, uma espécie de segundo volume. No entanto, isto é mera especulação da minha parte; não tenho nenhuma informação que a suporte.
Quem tenha chegado até aqui pode estar a pensar que não gostei deste livro. Mas a verdade é que, embora possa dar essa ideia, ela não é verdadeira. Algumas das histórias são realmente muito boas e isso bastaria para não poder achar o livro mau. O que acho é que houve algumas escolhas na feitura deste romance-colagem que fizeram com que o resultado não fosse melhor que a soma das partes, como seria ideal, nem sequer igual à soma das partes, mas pior que a soma das partes. Mas como as partes são boas ou muito boas, este livro está entre o razoável e o bom. Talvez a atirar mais para o lado do bom que do razoável, até porque é muito possível que parte da minha opinião menos favorável se deva a eu já conhecer anteriormente as melhores histórias e por isso esperar mais do livro do que ele me deu, o que não acontecerá com um leitor que parta para a leitura sem nenhuma informação prévia sobre este universo ficcional.
Um leitor assim, provavelmente, deixar-se-á fascinar por todo o worldbuilding subjacente ao livro, tanto em termos de vampirismo (e licantropia) científico, quanto no que toca aos aspetos de história alternativa. É que são ambos muito bons. A forma como o autor afasta a sobrenaturalidade dos seus vampiros, o modo sólido como a biologia destas criaturas é descrita, mas sobretudo a credibilidade da cadeia de consequências que vai dar origem a esta cronologia alternativa, através da qual se abordam temas tão relevantes como o passado colonial de vários pontos das Américas, o racismo sistémico e a escravatura, podem perfeitamente levar muitos leitores a nem reparar nos problemas de que falo acima. Ou a não lhes dar importância.
Mas eu, que não sou um leitor assim, não só por já conhecer este universo mas até porque tenho vindo ao longo de anos a escrever (devagarinho) um livro nestes moldes, estive mais atento a outras coisas. E encontrei aqui armadilhas a que me convirá ficar atento para não correr o risco de me deixar enredar nelas. Sim, esta leitura foi-me muito útil. E isso é mais um ponto a seu favor.
Eis o que achei de cada uma das histórias, considerada isoladamente:
- A Noiva e o Vampiro
- Crepúsculo Matutino
- O Vampiro de Nova Holanda
- Capitão Diabo das Geraes
- Morcego do Mar
- Assessor Para Assuntos Fúnebres
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