sábado, 15 de junho de 2019

Lido: Blindsight

Ler este livro foi mais ou menos acidental. O que pretendia ler era o terceiro e último da série Rifters, também do Peter Watts, e peguei neste Blindsight, distraído, julgando ser o livro certo. Pus-me a ler. Não era. Mas não consegui pô-lo de lado.

Estou em crer que o principal motivo para isso é tratar-se de uma boa e hard ficção científica espacial, e eu já andar com saudades de ler uma boa e hard ficção científica espacial — a última que tinha lido foi O Jogo Final, do Card, já há mais de um ano. Mas este romance é mais hard que o livro de Card. Não sei bem é se é melhor. Mas olhem que é bem capaz de ser.

Uma coisa é certa: é menos juvenil. Povoado pela mesma espécie de personagens quebradas que Watts apresenta na série Rifters, protagonizado por um homem que, num mundo de seres humanos melhorados, sofreu a amputação de um hemisfério cerebral para curar uma epilepsia violenta, este romance mergulha profundamente na velha questão tão típica da ficção científica: o que significa ser humano? E fá-lo, como também é muito típico da ficção científica, principalmente em pano de fundo, apesar de Watts por vezes chamar as questões filosóficas a primeiro plano.

Quando aí surgem, no primeiro plano, elas vão fazer companhia a uma história de Primeiro Contacto nos confins do Sistema Solar, que em certos momentos faz lembrar Stanislaw Lem e a sua ideia recorrente de que a inteligência alienígena não se limita a ser estranha, é mesmo incognoscível. Não tanto o Lem de Solaris, talvez, mas de certeza o Lem de Fiasco. Ou de A Voz do Dono, de certa forma.

Sim, há alienígenas. O livro praticamente começa com uma estranha forma de intrusão alienígena no planeta, enchendo os céus terrestres de microssondas que ardem na atmosfera e emitem uma enorme quantidade de informação para o espaço, localização indeterminada. Seguem-se anos de pausa e depois uma emissão claramente artificial que é captada por uma sonda terrestre, aparentemente oriunda de um cometa no cinturão de Kuiper. E toca a enviar naves para lá. Mas quando a história começa a sério é quando uma nave tripulada é súbita e bruscamente desviada do cometa para um ponto mais distante na nuvem de Oort. O que está lá? Um gigante gasoso até aí desconhecido. E em órbita desse gigante gasoso? Uma estrutura alienígena, gigantesca e praticamente incompreensível. Que os tripulantes da nave vão tentar compreender.

E esses tripulantes são gente estranha. O protagonista de cérebro amputado já referenciado, incapaz de empatia e obrigado a analisar racionalmente os sinais comportamentais dos companheiros para conseguir interagir socialmente com eles, é apenas um, e nem sequer o mais estranho. Também há uma mulher com personalidades múltiplas, por exemplo, cada qual com as suas particularidades e as suas especialidades. Mas quem leva a palma a todos os outros é o vampiro.

Sim, o vampiro.

No mundo futuro de Watts há vampiros. Não sobrenaturais, atenção: naturais. E não deixa de ser curioso que eu tenha pegado neste livro enquanto lia o do Gerson Lodi-Ribeiro com uma ideia semelhante. Não idêntica, que os vampiros de Watts são uma espécie verdadeira, resultante da evolução predatória e hematófaga de um ramo da humanidade, mas extinta, apenas devolvida à existência porque por algum motivo que não chega a ficar inteiramente claro se decidiu fazê-lo por intermédio de engenharia genética e clonagem.

Para uma expedição daquelas, no entanto, uma expedição que terá de lidar com o desconhecido e o imponderável, um vampiro é o ideal. Porque é uma criatura mais inteligente que os humanos normais, ou mesmo que os aditivados. Porque tem uma mente diferente, mais declaradamente predatória, mais fria na análise e implacável na ação. Quase tão alienígena como as dos alienígenas.

Pelo menos é essa a ideia a priori. A realidade... bem...

A realidade é que os alienígenas são muito alienígenas. Encontrados bem longe da Terra, em órbita de um planeta gigante até aí desconhecido, mergulhado nas profundezas sem luz da Nuvem de Oort, os alienígenas constroem uma estação espacial, ou uma nave espacial, dotada de tecnologia aparentemente viva e capaz de manipular a seu bel-prazer campos magnéticos extraordinariamente intensos. Mas quem são? O que são? O que pretendem? Será possível comunicar com eles? Encetar relações pacíficas?

O grosso do enredo narra as várias tentativas e fases por que passa o contacto entre as duas espécies, e as duas naves, da simples troca de mensagens a uma sucessão de ilusões e intrusões que vão acabar por chegar a um desfecho praticamente inevitável. Simultaneamente, Watts usa a natureza colonial dos alienígenas, a par das características invulgares dos tripulantes da nave terrestre, para explorar a fundo o que se entende por consciência, livre-arbítrio e inteligência, quais os seus limites, e até que ponto são influenciadas pela capacidade dos nossos sentidos se aperceberem do mundo. É que se os terrestres são estranhos, os ETs são-no muito mais. Watts, sempre biólogo marinho mesmo quando escreve sobre o espaço, baseia-se nos pólipos para criar uma espécie de alienígenas tecnológicos desprovida de sistema nervoso central e da maior parte dos órgãos de sentidos que nos são familiares. E acaba a escrever sobre a cegueira.

É por via da cegueira que este romance mais se aproxima das obras de Lem que refiro acima. Porque cada uma das duas espécies (mas especialmente a humana) está limitada àquilo que os respetivos sistemas sensoriais lhe permite captar. Não que seja incapaz de se aperceber tecnologicamente do resto, mas há milhões de anos de evolução a adaptar as vias de raciocínio a determinadas características sensoriais, tratando-as como absolutas, ao ponto de deixar as pobres criaturas dotadas dessas vias de raciocínio completamente cegas para tudo aquilo que lhes fuja. E isso tem consequências quando enfrentamos um choque de cegueiras.

Este é um romance complexo, sofisticado e inteligente sobre as nossas limitações enquanto seres humanos e sobretudo enquanto seres biológicos, um ótimo exemplo do que a ficção científica consegue ser quando quem a escreve sabe o que está a fazer. Não direi que é excelente, mas digo que é muito bom, mesmo muito bom, e que lhe falta um niquinho de nada para ser mesmo excelente. Ótima leitura para todos os que não se deixam desencorajar pela FC mais densa no que toca a terminologia científica. Recomendo vivamente. E ainda por cima é uma ótima e recomendável leitura que está livremente disponível na internet, aqui, numa série de formatos. Eu cá li o livro em epub.

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