segunda-feira, 17 de junho de 2019

Esopo: Fábulas de Esopo Ilustradas

Ora aqui está um livro que faz parte dos grandes clássicos e cujo título não podia ser mais ilustrativo. Fábulas de Esopo Ilustradas é, com efeito, um livro de fábulas ou pequenas historietas de fundo moral (com o tamanho de miniconto ou vinheta), em prosa, cuja autoria se atribui a Esopo, um escravo grego que graças à sua verve e inteligência conseguiu elevar-se a uma posição incomum entre escravos. E ilustradas porque, bem, esta edição é profusamente ilustrada, com ilustrações antigas, as quais não acompanham todas as histórias mas quase.

Note-se que falo aqui de "fábulas ou pequenas histórias" por um motivo: é que nem todas as historietas incluem a antropomorfização de animais ou outras de entidades que é característica das fábulas. Mas todas as 115 têm um fundo moral ou alegórico.

Esta edição, como vem assinalado na capa, foi "traduzida e adaptada por Carlos Pinheiro". Este, segundo julgo saber, será um professor do ensino secundário, e a sua função terá sido sobretudo a adaptação da maioria das histórias, previamente publicadas em português em 1848, à grafia moderna, e a tradução de um punhado de outras de versões inglesas datadas do século XIX e do início do século XX. É possível que também tenha produzido algumas das morais da história, seguindo o exemplo do autor (anónimo) da tradução portuguesa de 1848. Esta tradução oitocentista, já agora, está digitalizada e disponível na internet, por exemplo aqui.

Estas morais da história, de resto, são a meu ver o principal ponto fraco desta edição. Em primeiro lugar porque não são necessárias: a maioria das fábulas é de tal forma clara nos seus princípios moralizadores que a explicação incluída à parte se torna muito redundante. E em segundo lugar porque o caráter beato das morais da história detrai relativamente às fábulas propriamente ditas, chegando até a levar a dúvidas quanto à fidedignidade da tradução. Esopo foi grego, nascido mais de seiscentos anos antes de cristo, numa época em que a religião dominante entre o seu povo era politeísta e tinha uma hierarquia celeste encimada por Zeus. Falar de santos, do Deus cristão, ou até de Júpiter, o equivalente romano de Zeus, são marcas graves de anacronismo, e as notazinhas morais explicativas estão repletas delas. Pior: elas até surgem nas fábulas propriamente ditas.

É certo que é bastante claro que há neste livro um certo objetivo pedagógico, e é possível que o seu público alvo sejam crianças razoavelmente pequenas, caso em que parte da objeção acima fica prejudicada. Mas só parte: fazer proselitismo católico com base em textos de um grego politeísta parece-me no mínimo antiético, seja qual for o grupo etário envolvido.

Também é certo que em 1848, possivelmente, seria inevitável fazê-lo, dado o peso que a igreja católica tinha entre nós. Afinal de contas, a Inquisição só tinha sido extinta cerca de vinte anos antes. Mas estamos no século XXI, Portugal é um estado laico, e se calhar é mais que tempo de dar a Esopo, ao tempo de Esopo e às ideias de Esopo, inclusivamente as religiosas, o respeito que lhes é devido.

Sim, porque estas historietas têm mostrado uma resiliência notável, o que só por si basta para as elevar a um pedestal bastante elevado. Não é uma nem duas as que ressurgem em compilações de contos populares feitas dois milénios (ou mais) mais tarde, ainda que bastante alteradas. Pese embora o caráter cínico que muitas mostram, e uma forma de ver o mundo como se nele nada mais houvesse que lobos e candidatos a lobos, sempre prontos a devorar o primeiro incauto, que poderá ser muito natural num homem que nasceu escravo numa sociedade em muitos aspetos muito bárbara mas que hoje em dia não é particularmente educativa (especialmente se descontextualizada), há em muitas destas historinhas intemporalidade e universalidade suficientes para explicar a sua sobrevivência até aos dias de hoje.

Tudo somado, este livro é bom? Se tivermos em linha de conta a sua antiguidade, se o enquadrarmos no seu tempo e nas circunstâncias do seu autor, sem qualquer dúvida. Nos tempos civilizados em que vivemos (embora não tanto como às vezes parece e seria desejável) parte da sua relevância perdeu-se ou está em vias de se perder (se tudo correr bem), mas esta é uma das obras formadoras da vertente mais popular da cultura europeia. Deve ser lido. Com o espírito crítico bem desperto, mas deve ser lido.

Este livro está disponível em ebook, em vários locais da internet e pelo menos em dois formatos (PDF e epub), bastando procurar pelo título. Por exemplo: aqui.

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