sexta-feira, 14 de junho de 2019

Valter Marques: Interplanetas

Eu pertenço assumidamente àquele grupo de leitores que entre a forma literária e o conteúdo da literatura pendem para este último. Mas não sou radical. Ou seja, sou perfeitamente capaz de apreciar uma peça literária sobretudo pela sua forma, desde que o conteúdo não seja nulo ou absolutamente desinteressante. E, mais importante do que isso, pela parte que me toca há poucas coisas que mais contribuem para destruir a fruição de uma história do que as falhas no manejo da linguagem. Isto é, eu prefiro o conteúdo à forma, sim, mas há um limiar mínimo de forma abaixo do qual as coisas pura e simplesmente não funcionam.

E uma das coisas que mais me irrita a experiência de leitura são os saltos contínuos e sem qualquer justificação entre tempos narrativos. Sem qualquer justificação, sublinhe-se: por vezes há efeitos literários que necessitam desse tipo de salto, justificando-o; uma analepse pode ser escrita no pretérito mais-que-perfeito, por exemplo, funcionando como bolha num texto genericamente escrito noutro pretérito ou no presente. Mas quando não existe justificação para a história andar constantemente a saltar entre narrativa no presente e no passado, eu trepo paredes.

E sim, foi precisamente isso o que aconteceu neste Interplanetas (bibliografia). Um exemplo ao calhas (itálicos meus), entre muitos possíveis: «BRUUM! Dolores desperta com o estrondo. Escuta. Agora que estava acordada, começou a ter dúvidas se ouvira o tal barulho ou se fora um produto do seu sonho.»

Esta é uma falha que para mim é grave na prosa de Valter Marques. E não é a única; apesar de se tratar de um autor com algum potencial, esse potencial não estava ainda desenvolvido quando escreveu e publicou esta história, tanto em termos de prosa propriamente dita, como no que toca ao desenvolvimento do enredo, pois esta história deixa uma enorme sensação de coisa indecisa, que não sabe bem o que quer ser.

Começa como conto intimista, sobre uma mulher que está farta da vida que leva e resolve simplesmente partir para parte incerta. A páginas tantas transforma-se em história de terror mas sem realmente conseguir criar uma ligação emocional com quem lê (ou pelo menos com este leitor), quando ela entra numa estranha carruagem de um estranho comboio, na qual inicialmente se acha sozinha e da qual não consegue sair, e onde algum tempo mais tarde recebe a companhia de lobisomens. Mais adiante aparecem os ares de ficção científica que explicam o título: aquilo onde a mulher entrara, afinal, é a "composição ferroviária InterPlanetas, com destino à Grande Nebulosa de Fartolon". E o conto termina de forma desastrosa, com o autor a inserir-se nele sem qualquer motivo, a não ser ironizar-se autor famoso e peneirento.

O resultado de tudo isto é uma história que tem alguns elementos interessantes mas é muito pior do que esses elementos a poderiam levar a ser. Um conto bastante mauzinho.

Conto anterior desta publicação:

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