quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Maria Júlia Pacheco: Risco Vermelho

Aviso desde já: neste meu texto há spoilers do princípio ao fim. Estão avisados.

Ao terminar de ler este longo conto de Maria Júlia Pacheco, a interrogação que me ocupava a mente era algo como "o que leva uma mulher a escrever uma história destas?" Porque Risco Vermelho é a história, em grande medida desculpabilizadora, de um feminicida.

Maria Júlia Pacheco escreve bem. Bastante bem, até. Mas a história que conta é perturbadora, e não no bom sentido. O seu protagonista é um tipo cheio de inseguranças, vítima de abusos em pequeno, que se apaixona obsessivamente por uma psiquiatra. Não a psiquiatra dele, ainda que precisasse; psiquiatra de outros. A autora conta isto de uma forma sinuosa, e ainda bem porque assim faz literatura enquanto de outra forma estaria muito provavelmente apenas a escrever uma redação. Sim, formalmente o conto é bastante bom. Mas...

... mas a forma que a autora escolhe para contar a história, focando-se no assassino e não na vítima, dissecando os seus motivos e as suas justificações, compreendendo-os ao mesmo tempo que quase ignora a vida da mulher a que ele põe fim, causou-me um forte desconforto. O que leva uma mulher a escrever assim uma história destas? Sim, é certo que este livro foi publicado em 2012, altura em que este assunto estava menos na ordem do dia do que está hoje, mas mesmo assim...

Cada leitor lê as histórias à sua maneira e com base nos seus próprios conhecimentos e valores. É por isso, aliás, que a opinião literária nunca é a verdade, mas apenas uma verdade. Sim, mesmo a que é honesta. E é por isso que a opinião literária deve ser sempre feita a várias vozes. Mas divago. O que quero dizer é que é provável que o facto de eu ter escrito há alguns anos (espera... foi quase há vinte?! Vinte?! Não é possível!) um conto que também era protagonizado por um tipo que mata a mulher à pancada pode ter alguma influência no incómodo. Mas eu não tentei justificar o meu protagonista; pu-lo a dar desculpas esfarrapadas, pu-lo a portar-se como um idiota. Era essa a ideia: retratar o tipo como um cretino. Mas terei conseguido? Cada leitor lê as histórias à sua maneira, não é? Terei conseguido para toda a gente?

Não sei. E isso incomoda-me. Talvez esse incómodo se estenda ao conto da Maria Júlia Pacheco. Que é bom e está bem escrito e bem estruturado. Quanto a isso não tenho dúvidas. Tenho sobre o resto.

Contos anteriores deste livro:

5 comentários:

  1. O que leva uma mulher a escrever assim uma história destas?

    Não percebo esta dúvida. E se fosse um homem a escrever, já faria sentido?
    Eu farto-me de ler histórias de monstros e assassinos vários da perspectiva deles, geralmente escritos por autoras (o que é curioso), em que lhes são explicadas as motivações. Se calhar é mesmo por isso: conhece o teu inimigo e isso tudo.
    Estamos a fica demasiado politicamente correctinhos para o meu gosto, é só o que digo. Então agora já não se pode escrever sobre violência contra mulheres da perspectiva do agressor?

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    1. Pode-se fazer tudo.

      E também se pode achar certas coisas bizarras. Ou será que já não posso achar bizarro que uma mulher escreva uma história de agressão sexista praticamente a desculpar o agressor?

      E sim, se fosse um homem a escrever faria mais sentido: os homens fazem isso desde sempre. A história da literatura está pejada de histórias em que um gajo qualquer assassina uma mulher porque, coitado, a «amava muito». Escritas por homens, evidentemente, porque na sociedade deles as mulheres eram propriedade. Até estava na lei: o marido traído tinha o direito de matar a mulher. O contrário? Ha! Boa piada.

      Sempre achei essas histórias profundamente idiotas e, às vezes, sintomas de desejos recalcados. E acho bizarro que uma mulher pareça ir no mesmo sentido.

      Não é o facto de ela escrever uma história destas. É escrevê-la como a escreveu.

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  2. Ok. Pode ser, admito. Não li a história. Desta crítica, aqui, retirei que ela explicava as motivações e traumas do agressor, não que o desculpava. Há uma grande diferença. E só porque um autor nos põe dentro da cabeça de um personagem não significa que tenhamos de empatizar com ele/ela. Tenho tendência a ler histórias em que os protagonistas são monstruosos, a ponto de desejar que morram no fim, em que eles justificam porque são assim e que motivações (certas ou erradas ) os levam a agir. Estou neste preciso momento a ler um desses, na perspectiva de um serial killer que gosta de matar rapazes para uso necrófilo, e não tenho de empatizar com ele. Se o compreendo? Compreendo muito bem. Como compreendo qualquer serial killer do Mentes Criminosas ou o famoso Hannibal Lecter. Gosto de compreendê-los, de entrar na mente deles. Não é leitura para toda a gente.
    E também não acho que um protagonista destes tenha de ser representado como um imbecil. Por exemplo, o Hannibal Lecter.
    A questão aqui parece ser esta: até que ponto é que a autora nos está a mostrar o protagonista da perspectiva dele e até que ponto está a desculpá-lo (ou não). Teria de ler a história para ajuizar.

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    1. Sim, seria necessário ler a história. E há espaço para interpretação. A mim pareceu-me desculpatório, na base do "coitado, ele matou-a, e nem queria, porque não podia fazer outra coisa por causa de isto e isto e aquilo". Outros leitores provavelmente farão outras interpretações.

      E não disse em lado nenhum que um protagonista destes teria de ser representado como um imbecil. Disse que tentei representar o meu como um imbecil. É diferente.

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  3. E não disse em lado nenhum que um protagonista destes teria de ser representado como um imbecil. Disse que tentei representar o meu como um imbecil. É diferente.

    Peço desculpa, do contexto pensei mesmo que estavas a preconizar esse tipo de caracterização para esse tipo de personagem. (Um à parte, esse tipo de pessoa começa por ser sedutor, manipulador, inteligente, até ter a pessoa tão enredada na sua teia que já não se consegue libertar quando o abuso começa. Se mais pessoas soubessem disto mais alertadas estavam.)

    Outra possibilidade, neste tipo de histórias da perspectiva do agressor, é este desculpar-se com o choradinho do sociopata: "Vê lá o que me obrigaste a fazer!" Sim, matou-a, mas foi ela quem o "levou à loucura". Choradinho típico do sociopata. A culpa é sempre dos outros, nunca é dele. Não sei se a autora queria abordar isto e não foi bem sucedida. Como disse, era preciso eu ler a história para formar uma opinião.

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