quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Ray Bradbury: O Homem do Segundo Andar

Hoje em dia grita-se "plágio!" por tudo e por nada, ignorando-se com demasiada frequência que o conceito de plágio não se aplica a ideias mas sim à sua concretização. Não é plágio escrever uma história baseada num bruxo de óculos e com uma cicatriz na testa ou em elfos de orelhas pontiagudas, embora possa ser cliché e coisa derivativa e provavelmente pouco interessante; o que é plágio é repetir enredos, copiar excertos, usar as mesmas palavras, ou palavras muito semelhantes, para dizer as mesmas coisas. Por isso, se John Carpenter tivesse posto cá fora o filme They Live recentemente e não em 1988 provavelmente teria havido uma daquelas polémicas muito parvas e muito indignadas com acusações de plágio à mistura. É que o filme, que adapta um conto de Ray Nelson (Eight o'Clock in the Morning) de 1963, tem um detalhe fulcral de enredo que já tinha sido usado por Ray Bradbury neste conto. E O Homem do Segundo Andar (bibliografia) data de 1947.

Esse detalhe fulcral de enredo, e que me desculpem se acharem que o que se segue é spoiler, é o uso de uma superfície de material translúcido mas colorido para desvendar a verdadeira natureza de criaturas que de outra forma pareceriam inteiramente humanas. No filme de Carpenter, de ficção científica, essa superfície são uns óculos escuros cheios de estilo e as criaturas são invasores alienígenas; no conto de Bradbury, de horror, a superfície é um vitral e a criatura é um vampiro.

O protagonista é um miúdo, cujos pais gerem uma hospedaria, e que tem fascínio pelas vísceras, de ver a avó a preparar animais para cozinhar e faz, como qualquer miúdo curioso, o paralelismo entre os ossos e órgãos de uma galinha e os ossos e órgãos que sabe existirem dentro de si. E das outras pessoas. A história arranca no dia em que à hospedaria chega um homem com exigências estranhas, que aluga um quarto, e cujas exigências vão limitar a vida do miúdo, o que o leva a antipatizar intensamente com ele. O homem trabalha à noite e tem de dormir durante o dia, portanto não pode haver barulho. Ai o caraças, pá, já um miúdo não pode brincar?

E quando calha a espreitá-lo por uma janela de vidros coloridos que existe na casa e vê a sua verdadeira natureza, as coisas mudam de figura. Tornam-se perigosas. Mas o miúdo aprendeu algumas coisas com a avó, e o desfecho acontece. Bem. Este conto é muito bom, um daqueles contos de Bradbury que têm o ritmo certo, as personagens certas, o enredo certo e a forma de escrever certa para ficar na memória.

Contos anteriores deste livro:

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