quinta-feira, 28 de maio de 2020

Mudam-se os Tempos...

Eis uma ficçãozinha para vocês, a primeira de duas. Não é minha; só uma das duas o será. Mais tarde explico.

Mudam-se os Tempos...
Miguel Hernâni Guimarães


Gianni Foglia suava abundantemente enquanto observava o grande alienígena. Não por estar calor ou por ter vestido o seu melhor fato, embora estivesse demasiado calor para aquilo que o seu melhor fato estava preparado para suportar. Sim, Sua Excelência, o Alienígena, não se dignara pôr a temperatura naquela sua nave (se é que aquilo era uma nave; a viagem até ali fora… esquisita) a um nível mais suportável pelos convidados humanos. Não ajudava. Mas o que o punha a suar, o que lhe derramava vastas lagoas por baixo dos sovacos, não era isso.
Tinham preparado o relatório com todo o cuidado, após anos de reflexão. Anos? Décadas! Treze comités depois, um número infindável de emendas mais tarde, aquela era a melhor apresentação possível da espécie, escrita numa linguagem que obedecia rigorosamente às diretivas recebidas para a tradução para galáctico padrão. Não era um documento perfeito porque a perfeição era inalcançável, mas estava tão perto disso quanto era possível ao engenho humano.
E Sua Excelência, o Alienígena, passara-lhe os olhos por cima, literalmente — apesar de todas as diferenças, parecia ser uma criatura tão visual como qualquer humano com dois olhos funcionais — e pusera-o de parte.
Mas ainda não era por isso que Gianni Foglia suava.
Suava porque Sua Excelência, o Alienígena, logo a abrir a conversa, sem ter ainda sequer passado os olhos pelo relatório, os mirara de alto a baixo e perguntara:
— Vocês são os dois machos, não são?
Perante a confirmação, interrogara:
— E estão aqui em representação da espécie toda? Incluindo as fêmeas?
Outra confirmação, algo embaraçada, e o alienígena insistira:
— Porquê?
E Gianni não havia conseguido arranjar resposta melhor do que “porque calhou assim, excelência; eu sou diplomata, ele linguista, e ambos fomos nomeados pelos nossos pares”, resposta que fora acolhida com um pequeno grunhido. O companheiro, Gordien Sibomana, que não parecia estar a suar apesar do reluzente brilho na pele muito escura, murmurara-lhe ao ouvido que o grunhido era uma expressão de ceticismo.
Mas Gianni suava sobretudo porque Sua Excelência, o Alienígena, se pusera a ver as notícias. E a navegar pela internet.
E ali estava ele há bem mais que uma hora, coadjuvado por uma coisa esquisita que não se percebia bem se era organismo vivo ou máquina e parecia funcionar como uma espécie de tradutor ou processador de dados (ou talvez as duas coisas), a percorrer canais de televisão e sites de internet, redes sociais, jornais e até o velho rádio, sem esquecer as caixas de comentários de tudo isso, captando, absorvendo e entendendo sabe-se lá o quê de toda a cacofonia da espécie humana.
Suava porque não via como podia o seu querido relatório resistir às notícias de um planeta que nos últimos anos parecia ter enlouquecido ainda mais do que era costume, ao fel que era derramado pelas redes sociais, segundo a segundo, hora a hora, dia a dia, ao destrambelhamento completo das teorias da conspiração, às crenças sem qualquer base, à irracionalidade quotidiana. E nem os atos de generosidade e inteligência, que também os havia, o sossegavam: estes eram esperados; aqueles nem tanto. Por isso suava, e aguardava o veredito como um condenado ao cadafalso resignado à sua sorte, sem se atrever a esperar um milagre que o salvasse no último momento, apenas à espera, numa ânsia de que aquela tortura terminasse depressa.
Ainda por cima, a seu lado Sibomana era a imagem da calma. Quase impassível, quase esfíngico, só um levíssimo sorrisinho que retorcia as comissuras dos lábios do grande africano revelava um tudo-nada do que lhe ia por dentro.
Deslocou o peso de um pé para outro e Sua Excelência, o Alienígena, continuou a vasculhar as entranhas informativas da espécie humana. E repetiu o movimento ainda umas três ou quatro vezes antes que Sua Excelência soltasse finalmente um bramido grave, no limiar da audição. Olhou para Sibomana com um ponto de interrogação nas sobrancelhas.
— Está a rir — sussurrou o companheiro. — É o riso deles. — E o sorrisinho irónico nos lábios grossos tornou-se quase impercetivelmente mais pronunciado, como quem diz eu também me ria, se fosse a ele. Gianni suspirou e suou mais um pouco, sentindo uma grossa gota a escorrer-lhe pela têmpora direita. Já não deve faltar muito, pensou. Mas faltava, pois Sua Excelência, o Alienígena, estava claramente a divertir-se.
Quando acabou por se dar por satisfeito, Sua Excelência, o Alienígena, voltou a virar para os dois homens os seus apêndices fonadores e interrogou:
— Então vocês acham-se prontos para aderir à Comunidade Galáctica, é isso?
Gianni engoliu em seco. Que outra coisa poderia fazer?
— Sim, excelência. — Pigarreou. — Julgamos ter feito progressos suficientes desde o último processo de candidatura para… — e calou-se, pois Sua Excelência, o Alienígena, estava de novo a bramir, grave e longamente. Um apêndice situado em algo de semelhante a um pescoço tremia convulsivamente.
Quando finalmente lhe passou o ataque de riso, Sua Excelência, o Alienígena, dignou-se enfim a lavrar a sentença.
— Pedido indeferido — proclamou, cheio de formalidade. — A espécie não está pronta. Poderá voltar a candidatar-se dentro de dez anos galácticos padrão. Até lá, continuará sem ter acesso à comunicação interestelar.
— São duzentos e vinte e três anos e meio, aproximadamente — murmurou-lhe Sibomana ao ouvido.
Gianni olhou-o de soslaio. Este está a gozar o pratinho, pensou, talvez injustamente.
Mas o alienígena ainda não tinha acabado.
— Vocês são uma espécie divertida — disse, agora já sem formalidades. — Tanta ambição. Tão pouca noção. Era capaz de ser engraçado deixar-vos entrar e ficar a ver-vos estrebuchar. Infelizmente, a comunidade não partilha o meu sentido de humor e não vos acha grande piada. É pena. Melhor sorte da próxima vez.
E pô-los na rua.
Literalmente.
Num momento estavam no ambiente de Sua Excelência, o Alienígena, e no seguinte estavam na rua, a dois quarteirões da porta da sede da Sociedade Para o Contacto.
Gianni ficou um momento imóvel no passeio, um obstáculo aborrecido para a multidão de transeuntes que por algum motivo não parecia ter reparado no seu súbito aparecimento. Olhava em frente sem nada ver, tentando apenas decidir o que dizer ao Conselho Superior da SPC. Mas o seu cérebro negava-se a planear fosse o que fosse, preso num ciclo de recriminações e frustração, rogando pragas silenciosas ao universo, às leis inapeláveis da física, aos alienígenas e sobretudo aos que não o eram. Trinta anos. Haviam-se passado trinta anos entre o pedido de adesão e aquele momento. Trinta anos de história, trinta anos de mudanças, doze anos entre a emissão da mensagem e a sua receção, dezoito para os alienígenas arranjarem maneira de enviar alguém até cá. Trinta anos ao todo. Como tudo parecia bem encaminhado há trinta anos! E de repente… o descalabro.
Os tempos mudam, mudando as vontades. Demasiado depressa. Sempre demasiado depressa.
Um encontrão seguido de resmungo despertou-o. O africano olhava-o, colado às casas, fora da corrente de humanidade apressada. O sorrisinho irónico continuava a entortar-lhe os cantos da boca e, nos olhos inteligentes, brilhava algo mais, algo que Gianni não era capaz de identificar.
Foi ter com ele. Juntos, juntaram-se ao rio humano, caminhando rumo à sede da SPC. A princípio em silêncio, mas Gianni não o aguentou por muito tempo.
— Você parece divertido, Gordien — comentou. — Não consigo perceber porquê. Com certeza que sabe o que isto quer dizer.
— Claro que sei, Gianni — respondeu o outro. — vamos continuar entregues a nós próprios. Como até aqui.
— E isso diverte-o?
— Não. Não é isso o que me diverte. Na verdade, não estou divertido…
— Então esse sorrisinho é o quê, se me permite a pergunta?
— É um bocadinho de ironia, só isso. — Uma pausa. Depois: — Espero que não me leve a mal, não pretendo de forma alguma ofender, mas acho o seu ar desapontado bastante irónico.
Gianni estacou, surpreendido.
— Acha irónico que eu esteja desapontado? Não posso acreditar que não perceba a enorme oportunidade que acabámos de perder.
— Não se irrite, meu amigo, não se irrite. Claro que percebo. Ou por outra, sei de que oportunidade fala, mas sei que não perdemos nada porque nunca tivemos oportunidade alguma.
Gianni ficou apenas a olhá-lo, boquiaberto. Sem entender. O outro estendeu uma mão, pegou-lhe no braço.
— Vá, venha. Eles estão à nossa espera. Eu explico. Vocês fizeram a candidatura há trinta anos porque se achavam preparados. Falo de vocês em geral, não de si em concreto; bem sei que ainda não estava na SPC nessa época. Tal como eu. Mas você talvez nunca tenha tido a curiosidade de verificar as votações. Eu tive, porque quis confirmar uma ideia que não me largava, e de facto confirmei. A decisão não foi unânime, sabe?
— Ora. Nestas coisas nunca é.
— Sim, tem razão, claro. Mas há sempre muita informação a retirar da análise de quem vota como. E porquê. E essa decisão foi tomada pelos representantes do norte, juntamente com aqueles que, no sul, julgavam conseguir alguma vantagem acompanhando-os num voto que achavam ser sobretudo simbólico. Muita gente, naquela época, nem sequer acreditava lá muito que isso de uma Comunidade Galáctica sequer existisse. Mas o que interessa é que quem votou por convicção votou contra.
— Continuo sem perceber.
— Eu sei; é italiano. Se tivesse nascido no Burundi, como eu, compreenderia muito mais facilmente.
Gianni voltou a estacar, olhando o companheiro de cenho um pouco franzido.
— Meu caro amigo, não me parece que as nossas nacionalidades tenham grande relevância para esta conversa.
— Oh, mas têm. Toda. Por uma questão de história. De cultura. Da forma como a história influenciou a cultura. Vocês, no norte, achavam-se preparados. Mas eu sou africano. Vocês veem-se de uma forma, eu vejo-vos de outra. É inevitável. E por isso sei que não estavam, que não estão, que não estarão durante muito tempo. Nem vocês, nem nós, nem ninguém neste nosso turbulento planeta.
Gianni não respondeu. Ficou simplesmente a olhar o outro, num rosto onde o sorrisinho irónico desaparecera, substituído por uma expressão de uma certa melancolia. Foi Gordien quem interrompeu o silêncio.
— Só lhe estou a dizer isto para o ajudar a decidir o que dizer aos conselheiros. Você é um bom homem, Gianni, mas, como acontece com todos nós, os seus antecedentes culturais geram alguns pontos cegos na sua visão do mundo. Achei que lhe seria útil se eu iluminasse um desses pontos cegos para a conversa que vai ter daqui a bocadinho. Espero não me ter enganado nem o ter magoado sem necessidade. Vamos?
E foram. Em silêncio, pois Gianni Foglia tinha mesmo muito em que pensar.

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