domingo, 17 de maio de 2020

Mia Couto: Lénine na Cabeceira

A primeira edição do livro onde se incluem estas crónicas/contos data de 1988, época em que o mundo se encontrava em processo de mudança e os partidos e países baseados no modelo soviético se iam reinventando alguns, outros pura e simplesmente desaparecendo. É disso que Mia Couto aqui fala, por intermédio de uma história bastante irónica de atropelamento.

É um mendigo quem é atropelado, embora sem por isso sofrer danos. Fim de história? Alguém que apanha com um carro em cima, fica incólume e vai à sua vida. Não, pois alguém repara que o mendigo não vinha tão de mãos a abanar como seria típico da sua posição e logo soa a suspeita: será ladrão? Mais se adensam as suspeitas quando reparam que o saco — era um saco — está cheio de livros, livros políticos, livros marxistas. E vai daí vão perguntar ao homem que nas redondezas poderia possuir tais livros se por acaso não lhe teriam sido roubados. Mas não, que o homem já não queria ter Lénine na Cabeceira e os dera, simplesmente. Que por favor não lhos devolvessem. E assim lá se esclarece o assunto e lá fica o mendigo com todo aquele papel. Que de papel para ele não passa, pois não tem como compreender o que nele vem escrito.

Não é muito frequente Mia Couto ser tão intensamente político. Naquilo que tenho lido, ele nunca abdicou de fazer comentário social nas entrelinhas, mas julgo que nunca tinha lido nada dele em que haja uma referência tão direta à ideologia. Apesar, claro, de esta ser também aqui sujeita a interpretação: terá o homem que se livrou dos livros realmente mudado de referências, ou é apenas um vira-casacas, a mudar de camisa com as mudanças do vento? Mia Couto deixa o leitor tirar as suas próprias conclusões, e leitores diferentes concluirão coisas diferentes. No fundo, o que mais importa é o texto em si e a forma como a história se constrói, e isso é Mia Couto. Ainda algo inicial, é certo, mas Mia Couto.

Contos anteriores deste livro:

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