quinta-feira, 28 de maio de 2020

Ondulações sobre o fundo cósmico

Mais um conto. E este é meu.


Ondulações Sobre o Fundo Cósmico


Na noite interestelar toda a nave dorme.
Quem a visse de fora julgá-la-ia morta. Nem um ampere é gasto em aquecimento, nem uma luz está acesa, nem um tudo-nada de radiação ou de matéria se lhe escapa dos motores. O revestimento enegrecido do casco, iluminado apenas pela tenuíssima luz das estrelas distantes, exibe as marcas de incontáveis microimpactos que se sobrepõem em camadas como as crateras num mundo sem ar. Está ali toda a história da nave, pronta para ser lida por quem a souber ler. Mas ninguém se aproxima, nada a examina, nenhuma criatura ou aparelho a sonda. Tudo à volta é vácuo e até a radiação é rarefeita.
Mas eis que uma estrela se vai aproximando devagar. Dentro da nave, o núcleo básico, a única coisa a consumir um tudo-nada de energia, deteta nos seus instrumentos o aumento na radiação e como que abre um olho estremunhado. O olho olha a estrela, analisa a sua posição relativa à nave, calcula rumos, órbitas, distâncias relativas, presentes, passadas e futuras.
Não se preocupa com planetas. Que importam os planetas?
Decide que tudo está bem. Que nenhum ajuste é necessário. E volta a dormir, até serem mesmo horas de despertar.
Quando essa hora chega, o núcleo básico como que boceja, como que se espreguiça. Escancara toda a instrumentação necessária para proceder à recolha de informação. Eriça-se de antenas e emissores. Depois estende a vastíssima vela solar e começa a captar energia, fotão a fotão, transformando-a por enquanto integralmente em eletricidade, passando mais tarde a armazenar uma parte para uso futuro e a usar outra para a navegação.
A nave vai despertando ao longo de meses, em função da energia disponível.
Primeiro computam-se rotas, calculam-se objetivos seguintes, planeiam-se ajustes de rumo, fazem-se observações da estrela e do ambiente que a rodeia e, sim, agora os planetas já interessam. Tudo é armazenado na memória interna e classificado. Tudo o que é considerado interessante é comprimido e preparado para a transmissão.
Depois, a nave descansa. Repõe as reservas de energia, usa uma parte dessa energia para conduzir iões para os coletores de matéria, repondo assim também as reservas desse outro aspeto da mesma entidade universal. E vai-se sempre aproximando da estrela, mais e mais. Alguém que a visse e não tivesse grande capacidade de navegação poderia julgar que segue em rota de colisão, mas enganar-se-ia. Não é uma colisão que se prepara, é coisa diferente.
A certa altura, o núcleo básico decide que é hora de ativar os ambientes simulados. Visivelmente, nada na nave se altera, mas nas entranhas do seu sistema nervoso como que renascem dias. Ou tempos. Sóis sobem em céus irreais, ou reais apenas para quem sob eles vive, luzes acendem-se, veículos terrestres automatizados retomam o movimento. E as personalidades despertam, olham em volta, sorriem ou viram-se para o outro lado e tentam dormir só mais um bocadinho. Para elas, passara-se uma noite, ou um segundo. O ambiente renasce para o momento em que se apagara, e a nova situação da nave, no tempo e no espaço, é irrelevante e em grande medida desconhecida. Mas não para todos, só quase. Há alguns, um punhado de eleitos, um número ínfimo entre todas as personalidades que habitam os ambientes simulados, que se dirigem para salas de controlo e analisam os dados, e tomam decisões, em conjunto e separados, tendo em atenção as recomendações do núcleo da nave. São personalidades que vivem como todas as outras, mas mais um pouco, pois acrescentam ao seu mundo próprio alguma interação com o mundo exterior.
Sim, pois cada ambiente simulado é um mundo. E durante os meses seguintes cada mês equivale a anos. Lá dentro vive-se e morre-se, brinca-se e chora-se. São escritos poemas e livros inteiros, são feitos filmes, é composta música e canta-se e dança-se e há discussões e faz-se amor. Todas as coisas de que é feita a experiência humana lá se encontram, e quase não há limites ao que é possível.
Mas eis que tudo começa de novo a apagar-se, com grande rapidez. Cá fora, no espaço real, a vela recolhe, a maioria dos instrumentos e antenas encolhe-se, a nave volta a reduzir-se ao velho casco cheio de cicatrizes. Aproxima-se do sistema interior, onde a matéria é mais densa, onde bastaria um grão de poeira no lugar errado, e há ali tantos, e tão velozes, para causar danos custosos de reparar. Mas agora não é o casco sem vida de outrora, pois o que ali vai é uma nave ativa. Configurações alteram-se, ajusta-se a atitude, os motores preparam-se para serem ligados. Sê-lo-ão no momento em que a nave estiver mais próxima da estrela, a fim de tirar partido da gravidade desta para tornar mais económica a manobra. Nesse momento, os motores disparam durante o tempo precisamente necessário e suficiente e, assim que analisa o resultado da manobra, a nave decide que sim, está bem, ela fora precisa, e já segue rumo à estrela seguinte.
Mas ainda tem muito a fazer.
Assim que fica para trás a porção mais densa do sistema, as gigantescas velas desfraldam de novo, a energia volta a inundar os sistemas internos, os espaços simulados voltam a si e, nos meses seguintes, neles passam-se mais anos, vivem-se mais vidas, nascem sonhos e morrem esperanças. Cá fora, a recolha de dados prossegue, bem como o seu processamento, até que a distância entre a nave a e estrela começa a ser demasiada e a capacidade de captação de energia pelas velas começa a tornar-se insuficiente. Então, tudo se vai apagando, devagarinho, um ambiente atrás do outro. As personalidades adormecem e não despertam, os sóis põem-se e não voltam a nascer, os sonhos, esperanças e desejos ficam adiados sine die, restando de novo apenas o núcleo básico. Antes de recolher as velas, a nave vira a grande antena principal para um ponto distante, e transmite tudo o que aprendera, sem saber ao certo se ainda restará alguém para receber a mensagem, mas também sem querer realmente saber. É uma coisa que tem de fazer, simplesmente, e por isso fá-la.
Depois a antena como que se desmonta, as velas recolhem uma última vez, e o núcleo básico volta a adormecer. À frente, espera-a a longa extensão da noite interestelar.
E ao fundo, muito, muito ao fundo, um pontinho de luz quase invisível como que tremula de expetativa.

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